A relação Governo e Congresso – Antônio Augusto de Queiroz

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Em palestra recente sobre a conjuntura política, com foco na relação do governo com o Congresso Nacional, tive a oportunidade de apresentar pequeno histórico das dificuldades do Poder Executivo na condução da agenda governamental, reflexão que compartilho com os leitores.

Na oportunidade, chamei à atenção para o fato de que “vivemos conjuntura políticas das mais complexas, com combinação complicada, marcada por disputa de agenda entre o presidente da República, que foi eleito para reconstruir o País, reativar os espaços de diálogos e incluir novamente os pobres no orçamento público, e Congresso empoderado e majoritariamente responsável pelo desmonte promovido pelas políticas neoliberais dos 2 governos anteriores.
Antes de tratar especificamente dessa difícil relação do Poder Executivo com o Congresso, que tem dificultado o avanço da agenda governamental, é importante contextualizar o ambiente político pós-eleição, especialmente a herança legada e a recusa do então presidente em aceitar o resultado da eleição.
O desafio do presidente Lula desde a eleição não tem sido trivial. Ele herdou País em situação de terra arrasada, com demandas reprimidas, a máquina pública destruída e o Estado sem capacidade de resposta, pelo engessamento decorrente do teto de gasto e outras restrições fiscais criadas nos governos anteriores.
A crise era de tal ordem que o presidente eleito precisou governar antes mesmo da posse, tendo que articular a elaboração e aprovação de Emenda à Constituição de transição, sem a qual haveria paralisação da máquina pública e atraso no pagamento de programas sociais.

Questionamento do resultado eleitoral
A situação política no País não era menos preocupante, com o então presidente questionando o resultado da eleição e os aliados dele articulando golpe de Estado, a partir de acampamento em frente ao QG (Quartel-General) do Exército, em Brasília, para impedir a posse do presidente eleito.
Como consequência da recusa de Bolsonaro em aceitar o resultado da eleição houve quebra-quebra em Brasília em 12 de dezembro de 2022, data da diplomação do presidente eleito e o vice, e destruição dos Palácios do Planalto, do Supremo e do Congresso Nacional, 8 dias após a posse do presidente eleito.
O novo governo, para impor a ordem, teve que intervir na Segurança Pública do Distrito Federal, afastar o comandante do Exército, ambos por omissão na invasão e destruição dos palácios dos poderes, e requerer à Justiça a prisão de todos os envolvidos nos atos terroristas do dia 8 de janeiro.

Governo de inclusão e pacificação
O novo governo,  em tudo contrário ao antecessor, já no ato de posse deixou evidente o compromisso com a democracia, com a ciência, com a diversidade, com a justiça e com os excluídos socialmente e fez questão de reafirmar isso  para o Brasil e o mundo ao subir a rampa acompanhado de 8 pessoas do povo (1 mulher negra, 1 menino pobre da periferia do DF, 1 cacique indígena, 1 trabalhador metalúrgico, 1 professor, 1 cozinheira, 1 artesão e 1 pessoa com deficiência e ativista desta agenda social) e receber a faixa presidencial das mãos de 1 mulher negra e catadora de material reciclável.
Esse, abreviadamente, foi o ambiente do pós-eleição, da posse presidencial.

Relação conflituosa
Agora vamos tratar das razões da dificuldade de relacionamento com o novo Congresso, cuja composição pode ser classificada como neoliberal, do ponto de vista econômico, fiscalista, do ponto de vista de gestão, à direita, do ponto de visto do espectro político, conservador, do ponto de vista dos valores, e refratário aos direitos humanos e ao meio ambiente.
O novo Congresso — renovado em menos de 50% — é a continuidade piorada do Congresso anterior, inclusive manteve os presidentes das 2 casas e de boa parte dos líderes da legislatura passada.
Para compreender melhor o papel e o poder desse novo Congresso, é preciso contextualizar as circunstâncias que fizeram dele 1 Congresso empoderado, especialmente nas 2 legislaturas anteriores.

Apetites fisiológicos
Na Legislatura 2015-2019, no embalo das manifestações populares e em razão da recusa em ceder aos apetites fisiológicos, o Congresso destituiu a presidente Dilma e empossou e efetivou o vice-presidente Michel Temer, fazendo dele refém em função dos 2 processos movidos contra ele pelo Ministério Público.
Na Legislatura 2019-2023, com Bolsonaro na Presidência da República, em grande medida eleito no embalo do desgaste causado pelo impeachment de Dilma e as denúncias contra Michel Temer (MDB), o Congresso ampliou ainda mais os poderes sobre o Executivo.
Assim, nos governos Temer e Bolsonaro, ambos temerosos de processos de impeachment, o Poder Executivo fez suas as pautas do mercado e do Congresso Nacional, entregando para os líderes dos partidos da base e os presidentes das casas legislativas o domínio pleno da agenda e até do Orçamento Público, por intermédio das emendas impositivas e de relator.

Agenda do mercado

 

Para o mercado, foram feitas concessões como a desregulamentação de direitos, a desativação das fiscalizações do trabalho e do meio ambiente.  As principais mudanças foram a Reforma Trabalhista, a Terceirização generalizada, o Teto de Gasto, a autonomia do Banco Central, o Marco do Saneamento, a Reforma da Previdência, a mudança no voto de qualidade no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), as restrições de atuação e a privatização ou venda de ativos, a preço vil, de estatais estratégicas, dentre outras.
Para os parlamentares, em troca do apoio no Congresso, foram dados aumentos generosos nos fundos eleitoral e partidário, voltou o horário eleitoral gratuito, foi dado caráter impositivo às emendas de bancada, houve a instituição das emendas de relator, o famoso orçamento secreto, e, principalmente, eles indicaram e assumiram a coordenação política do governo, assim como as Pastas ministeriais com maior orçamento e capacidade de gasto.

Maioria parlamentar é de direita
Na eleição de 2022, a maioria dos deputados renovou os respectivos mandatos e as vagas decorrentes dos que perderam o mandato ou desistiram da disputa foram ocupadas por candidatos vinculados à direita e extrema-direita, beneficiada pela candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro (PL).
Entretanto, a eleição de Lula no segundo turno, candidato cujo perfil e visão de mundo diferem completamente dos antecessores, incomodou profundamente, tanto a parcela do mercado que se beneficiou dos governos Temer e Bolsonaro, quanto os partidos conservadores e fisiológicos que temiam a perda do controle sobre a agenda governamental.
Porém, como o presidente Lula foi eleito em segundo turno com margem pequena de votos e não elegeu base consistente, em número suficiente, para aprovar a agenda dele, passou a depender da formação de coalizão de apoio, que inclui partidos que apoiaram os governos anteriores e que nem sempre irão comungar com todas as iniciativas governamentais, especialmente àquelas que revejam temas aprovados nos governos Temer e Bolsonaro.
Num contexto desses, era natural que a composição conservadora e fisiológica do novo Congresso reagisse à perda de poder e tentasse, a todo custo, preservar ao menos parte da influência que exerceu no governo federal durante os mandatos dos 2 presidentes anteriores.
Contexto das derrotas de Lula
É nesse contexto que devem ser lidas as derrotas do governo em relação à não aprovação da MP (medida provisória) que promovia a retomada do voto de qualidade no Carf, à aprovação de projeto de decreto legislativo para anular decreto que alterou o marco do saneamento, a retirada de pauta do Projeto de Lei das Fake News, a aprovação de emendas para permitir a devastação da mata atlântica e aprovação do substitutivo ao projeto de lei do marco temporal para demarcação das terras indígenas, além do susto na MP de reorganização da administração pública — MP dos Ministérios.
Nesses temas, o recado do Congresso foi absolutamente claro. Se não houver diálogo e calibragem nas propostas, haverá dificuldades para o governo. Além disto, existe o problema do Banco Central, cujo presidente, opositor claro do atual presidente da República, continua insistindo em manter os juros nas alturas, dificultando enormemente o retorno do crédito e, em consequência, a volta dos investimentos da geração de emprego e renda.
Isso demonstra que a montagem ministerial, fortemente influenciada por disputas regionais, não foi capaz de dar maioria ao governo para aprovar os temas centrais da agenda vitoriosa, seja porque partidos não se sentiram contemplados com os nomes indicados, caso do União Brasil, seja porque o governo não abriu espaço para partidos como o PP e Republicanos, que historicamente fizeram parte dos governos anteriores do PT.
Por outro lado, setores do PT consideram que o governo já fez concessões demais, e não está promovendo a substituição de aliados do governo Bolsonaro, que ainda ocupam posições de destaque no atual mandato.

Mais articulação
O governo já entendeu que a relação com esse novo Congresso vai requerer da coordenação política do Palácio do Planalto muita paciência, humildade, disposição para o diálogo, calibragem no conteúdo das políticas públicas e capacidade de articulação e negociação, especialmente quando se tratar da revisão de marcos regulatórios aprovados nos últimos 6 anos. Além disso, o presidente e o partido são de esquerda, mas o governo como um todo, não. A composição governista revela a influência de partidos que não apoiam as mesmas causas, notadamente políticas identitárias e no campo do dos costumes e uma atuação mais ativa do Estado na economia.
Nunca é demais lembrar que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, absolutamente político e sem base material, foi mais resultado de pressão do mercado, da mídia e de parcela expressiva do Congresso, inconformado com a pouca atenção dada aos parlamentares e com postura mais intervencionista da presidente na economia, do que por supostos desvios de conduta.
É verdade que o governo, apesar das dificuldades, conseguiu avançar com algumas pautas, como a que reorganizou a máquina pública, restaurando pastas ministeriais importantes,  recriou os espaços de diálogo com a sociedade, entre os quais o Conselhão,  recriou programas sociais, como o Bolsa-Família, Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos, Farmácia Popular, concretizou o programa Desensola e aprovou a lei da igualdade salarial entre homens e mulheres, além de dar aumento real para o salário mínimo, reajustar o piso salarial dos professores, o salário dos servidores públicos, as bolsa da Capes do CNPq, e implementou o piso salarial dos enfermeiros. Contudo, terá que ter muito cuidado com os temas que revejam marcos regulatórios de interesse do mercado aprovados nos governos anteriores.

Marcos regulatórios

Não é que deva desistir de rever esses marcos.  Deve buscar revê-los inclusive porque alguns desses são condições para que o País retome os investimentos e avance na geração de emprego e renda, mas terá que dialogar e buscar os mecanismos adequados, porque não é nada confortável para os parlamentares que aprovaram esses mesmos marcos em governos anteriores.
Esse é o retrato das dificuldades de relacionamento com o Congresso. É nesse ambiente que os temas regulatórios, como o previdenciário, especialmente aqueles aprovados no âmbito da EC (Emenda à Constituição) 103, o trabalhista, ambiental e tributário, serão debatidos.
É preciso considerar esta realidade. Os pontos que não dependerem do Congresso, o Poder Executivo poderá tocar com relativa facilidade, especialmente por meio de decretos, portarias ou resoluções de órgãos colegiados, mas no que depender do Congresso terá que ter muita negociação e calibragem, sob pena de não passar.

Fonte de financiamento da folha

Uma das urgências em matéria previdenciária, por exemplo, será a mudança da fonte de financiamento da folha para a receita ou o faturamento. Com a automação, a digitalização e “uberização” do mundo do trabalho, a folha de salário não dará mais conta de financiar a Previdência Pública e o governo deve agir logo, antes que essa migração represente aumento real de despesa para as empresas.
Finalmente, a pauta mais robusta do governo será a aprovação do arcabouço fiscal no Senado e da reforma tributária nas 2 casas do Congresso, e ambas são vistas pela mídia e pelo mercado como indispensáveis para a estabilidade econômica e a retomada do crescimento econômico.
Como vimos, o desafio do governo em geral, e do presidente Lula, em particular, será superar esses obstáculos de relacionamento com o Congresso e criar os meios para retomar o crédito e incentivar a atividade econômica. Para tanto, é necessário organização e criatividade.

Aprovação da agenda eleita

O sucesso do governo depende da aprovação da agenda eleita no Congresso Nacional e da volta do crédito e dos investimentos, sem os quais dificilmente o terceiro mandato repetirá o sucesso dos 2 primeiros, que combinaram crescimento econômico, redução das desigualdades e o controle das contas públicas.
Embora haja alguns sinais positivos na área econômica, como o aumento da produção agrícola, a queda do dólar, a melhoria da avaliação de risco do Brasil, rumo ao grau de investimento, a redução dos índices de inflação, em maio e a melhoria das estimativas de crescimento da economia, ainda é cedo para fazer projeções mais otimistas.

A situação pode e certamente será equacionada, porém depende da melhoria da comunicação e da coordenação política do governo. E, em última instância, o governo dispõe de ativo inigualável na arte de dialogar e convencer: o presidente Lula, homem com enorme poder de persuasão e negociação, que tem inigualável representatividade nas camadas mais pobres da sociedade, e que consegue expressar, melhor do que ninguém, as angústias e necessidades do povo.

 Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – Conselhão.