Identitarismo e o capitalismo melhorado – Carolina Maria Ruy

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Um novo esquerdismo juvenil ganhou força nos anos 1960, impulsionado por protestos pacifistas contra as guerras da Coreia e do Vietnã, e pelas campanhas por direitos civis e revolução dos costumes.

Embora esses movimentos tenham avançado em conquistas sociais, eles buscavam a utopia de um capitalismo inclusivo e não uma transformação radical no sistema gerador de desigualdade e pobreza. Muitas vezes foram contrários aos princípios que fundamentaram a Revolução de 1917 e críticos à União Soviética. Performático e com discurso fácil, esse esquerdismo influenciou gerações, tirando a luta de classes do foco.

Teoria da fartura material

A euforia consumista que se seguiu ao término da guerra em 1945 gerou em muitos teóricos a falsa impressão de que a vida material, inclusive dos mais pobres e da classe trabalhadora, estava satisfeita. Dessa visão enviesada, surgiram teorias de que restava à esquerda romper padrões e ajustar grupos definidos por “identidades” na suposta bonança capitalista.

Não apenas isso não se comprovaria nas décadas seguintes, como não correspondia à realidade daquele momento, já que, mesmo na expansão econômica do pós-Segunda Guerra, os mais pobres continuavam vulneráveis e necessitados.

O Brasil, entre as décadas de 1950 e 1970, assim como diversas outras regiões do mundo, ainda tentava superar sua condição rural miserável. Altas taxas de analfabetismo, êxodos provocados pela fome, alta mortalidade infantil, exploração do trabalho, com forte analogia ao trabalho escravo, entre outras chagas, caracterizavam a situação do povo.

Mas, com o fortalecimento do neoliberalismo, a concepção acerca da suposta abundância material, mesmo sem respaldo na realidade, prosperou influenciando inclusive a formação desta “nova esquerda”. Uma esquerda liberal originada nos EUA que nasceu renegando a influência soviética, a desigualdade de classes e os trabalhadores.

Pauta identitária

O que hoje chamamos de pauta identitária vem deste contexto. Cooptada pelo mercado e empobrecida politicamente, ela tornou-se cada vez mais estéril. O perfil midiático e a busca constante por validação e diferenciação são traços do identitarismo, assim como a prática de denuncismo, inclusive sem provas, cancelamentos e incitação ao ódio e à divisão.

Nem mesmo as ideias de amplitude e diversidade, que estabelecem uma falsa dicotomia com a esquerda tradicional, se sustentam.

Desde sua origem, a esquerda tradicional considera as causas sociais e as articula através do denominador comum que é o combate à opressão e a busca pela universalidade de direitos básicos e pela igualdade.

Ao partir dessa raiz, esse pensamento oferece uma perspectiva mais completa do problema. Por outro lado, a fragmentação das pautas e a ideia de “melhorar” o capitalismo levam a uma permanente repetição dos vícios da desigualdade.

Manifesto Comunista

Publicado em 1848, o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, nos ajuda a compreender as limitações do novo esquerdismo que emergiu após a Segunda Guerra e que se fortaleceu na luta ideológica da Guerra Fria.

O livro trata da necessidade de organização da classe operária e também de como o capitalismo usa artimanhas para se refazer e se perpetuar, mantendo a contradição de classes.

“A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas. O permanente revolucionamento da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as outras”, diz o documento.

Atualizar o capitalismo neste “permanente revolucionamento” é o que a pauta identitária, herdeira do esquerdismo dos anos 1960, faz atualmente.

Marx e Engels chamaram de “burgueses socialistas” aqueles que almejavam as condições de vida da sociedade moderna “sem as lutas e perigos delas necessariamente decorrentes”. “Querem a burguesia sem o proletariado”, disseram.

Emancipação universal

É preciso ter clareza sobre a necessidade de combater a força destruidora do racismo, da misoginia, do machismo, da discriminação contra os homossexuais e a população LGBT, de combater a marginalização das pessoas com deficiência, dos povos indígenas, dos idosos, bem como proteger o meio ambiente e os animais.

Do ponto de vista da esquerda tradicional, estas causas sociais expressam a complexidade e a profundidade da luta de classes. Longe de basear-se em discursos fáceis, elas trazem desafios reais que não podem ser abstraídos e diluídos em formulações teóricas.

É, portanto, um erro atacar causas legítimas para criticar a pauta identitária.

O ponto central desse debate, enfim, são as linhas tênues que separam a ideia de “capitalismo inclusivo” da ideia de superação deste sistema, visando a emancipação universal dos povos oprimidos.

Trata-se de resistir às artimanhas de perpetuação da desigualdade e ter em mente que a história avança através da organização e da luta política.

 

Carolina Maria Ruy, Pesquisadora, jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.