Qual o próximo passo do Uber na luta pelo futuro?

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Californianos vão votar na Proposta 22, medida que permitiria ao Uber evitar a transformação de motoristas em funcionários, o que exigiria a oferta de benefícios obrigatórios

Dara Khosrowshahi conecta-se à nossa ligação Zoom de seu escritório em San Francisco, sentado em uma cadeira projetada para jogadores radicais de videogame. Foi um presente recente de sua mulher, Sydney, que disse que ultimamente ele passa tanto tempo sentado no escritório que precisava estar mais confortável.

Nos últimos meses, o executivo-chefe do Uber fez lobby com sua webcam pelo futuro da empresa e da indústria que ela ajudou a criar. A economia gig, onde os empregos surgiram rapidamente, mas as normas e proteções do trabalho regular desapareceram ainda mais depressa, agora enfrenta a contestação de organizações trabalhistas e políticos.

Já estive na casa de Khosrowshahi antes, mas apenas do lado de fora. Em junho, observei quando uma caravana de motoristas do Uber passou lentamente, buzinando e gritando. Um homem de 73 anos chamado Vernon, motorista do Uber em tempo integral, disse que não podia cuidar de sua mãe moribunda. Dois outros motoristas erguiam uma faixa dizendo: “Um ladrão mora aqui”.

Khosrowshahi não estava lá para ver. Ele e sua família tinham ido para sua segunda casa na costa de Seattle. A propriedade deles em San Francisco foi depois borrada no Street View do Google —uma solicitação de sua equipe de segurança, Khosrowshahi presume, aparentemente sem saber. “Eu diria que é uma das partes menos confortáveis do meu trabalho. Estou à vontade com o interesse público por mim como CEO [presidente]. Não me sinto à vontade com o interesse público por mim e minha família ou por onde moro.”

Khosrowshahi, 51, está no comando do Uber desde 2017. Ele assumiu quando a empresa estava desmoronando graças a uma cultura venenosa deixada para trás por seu cofundador, Travis Kalanick. Kalanick era o tipo de homem que o Vale do Silício costumava adorar —um perturbador. Ao formar o Uber, passou por cima dos regulamentos e dos concorrentes. Ele estava mudando o mundo. Todos os outros estavam lentos demais para acompanhar.

Essa atitude criou uma empresa que revolucionou o transporte global, dizimando o negócio dos táxis licenciados. Antes do Uber, diz a piada, tínhamos medo de estranhos na internet. Hoje nós os chamamos para nos pegar. Hoje o Uber tem cerca de 5 milhões de motoristas em sua plataforma, globalmente.

Em 2015, Kalanick havia criado uma startup de mais de US$ 50 bilhões (R$ 288,6 bilhões). Mas ele também criou as condições para os vários escândalos que acabaram levando à sua demissão. Em fevereiro de 2017, a denunciante Susan Fowler escreveu uma postagem em blog que detalhava um ambiente de sexismo e assédio sexual. Kalanick se desculpou. No mesmo mês, uma gravação em vídeo obtida pela agência Bloomberg mostrou Kalanick furioso, dizendo a um motorista do Uber com dificuldades financeiras que “algumas pessoas não gostam de assumir a responsabilidade por suas próprias merdas”. Ele pediu desculpas novamente.

Quando surgiram notícias da fraude do Uber diante de autoridades públicas, com a criação de um software especial que ocultava a movimentação dos motoristas do Uber nas cidades onde era proibido, foi o terceiro grande escândalo em questão de semanas. Uma investigação interna, liderada pelo ex-procurador-geral (ministro da Justiça) dos Estados Unidos Eric Holder, levou à demissão de mais de 20 funcionários. Em junho, Kalanick havia partido.

O Uber precisava de alguém que pudesse salvar a empresa e levá-la a estrear com sucesso no mercado de ações. Precisava de alguém com experiência em lidar com grandes empresas sem drama. Em outras palavras, eles não precisavam de um disruptor, mas de um diplomata. Encontraram um em Khosrowshahi.

“É preciso dar a Travis o crédito por uma das histórias mais disruptivas em tecnologia da última década”, disse Dan Ives, analista da Wedbush Securities. “Mas estava claro que não seria ele quem levaria o Uber ao próximo capítulo. Dara iria, imediatamente, ouvir os investidores e mudar o modelo de negócios no sentido da lucratividade.”

Em três anos, o novo executivo-chefe modificou a reputação do Uber e o conduziu por meio de uma oferta pública inicial acidentada. Mas agora, enquanto políticos do mundo todo exigem um tratamento melhor aos trabalhadores da economia gig, Khosrowshahi enfrenta uma batalha maior: a sobrevivência do modelo de negócios do Uber.

Nascido em 1969 em uma das famílias mais ricas do Irã, Khosrowshahi teve uma educação de privilégios turbulentos. “Balas ressoavam em nossa casa”, lembra ele sobre a época, aos nove anos, quando viu um integrante da Guarda Revolucionária irromper pelo terreno de sua propriedade para alcançar um vizinho e disparar acidentalmente sua arma.

Para sua mãe, foi a gota d’água. Eles fugiram de Teerã, acabando por se mudar para a casa de parentes em Tarrytown, um rico vilarejo a 40 quilômetros ao norte de Manhattan. O novo governo iraniano confiscou e nacionalizou as empresas da família —um conglomerado que vale centenas de milhões de dólares. Mais tarde, quando o pai de Khosrowshahi viajou ao Irã para cuidar de seu pai doente, o governo o impediu de retornar aos EUA durante seis anos.

“O que aconteceu no Irã e na revolução foi muito, muito difícil para meus pais”, diz Khosrowshahi. “Mas as crianças são adaptáveis. Era uma língua diferente e um lugar diferente —mas com comida familiar na mesa.”

Khosrowshahi frequentou a exclusiva Escola Hackley em Tarrytown, sendo chamado temporariamente de “Darren”. “Foi um momento decisivo e desesperador”, diz ele, “depois da 24ª vez que alguém me perguntou ‘Dara? De-rah? Kos-roe-shah-o quê?’ Eu gosto muito mais de Dara do que de Darren.”

Assim como acontece com muitos imigrantes nos EUA, o futebol o ajudou a fazer amizades. Mais tarde, outros membros de sua família se juntaram a ele na escola, incluindo seus primos mais novos, os gêmeos Ali e Hadi Partovi, que ficaram maravilhados com sua popularidade. “Não tínhamos amigos, não tínhamos habilidades sociais”, diz Hadi. “E Dara era presidente da turma, capitão do time de futebol, um dos melhores alunos do lugar.”

A história da origem de Khosrowshahi não é do tipo normalmente elogiado pela indústria de tecnologia. Não incluía codificação em garagens ou hacking em dormitórios de Harvard. Ele até terminou os estudos de engenharia bioelétrica, na Brown, antes de iniciar sua carreira. “Sou um nerd enrustido”, diz. “Talvez não da mesma maneira que alguns outros CEOs [presidentes], mas definitivamente tenho um nerd em mim.”

“Acho que havia um sentimento comum de querer trabalhar duro para recuperar o que nossa família perdeu na revolução iraniana”, disse Hadi Partovi. Vários membros da família, incluindo os gêmeos, tornaram-se forças formidáveis na tecnologia americana. Mas Khosrowshahi inicialmente escolheu um caminho diferente, tornando-se analista do banco de investimentos Allen & Company em 1991, antes de entrar para a USA Networks, do magnata bilionário da mídia Barry Diller.

Em 2005, quando o conglomerado de Diller, IAC, lançou o site de viagens Expedia, Khosrowshahi foi promovido a presidente. Ele quadruplicou o valor da empresa ao longo de seu mandato de 12 anos.

Quando chegou a hora de substituir Kalanick no Uber, Khosrowshahi era uma aposta externa. Ele enfrentou Jeff Immelt, então da General Electric, que, de acordo com reportagens da época, falhou em sua apresentação diante do conselho. Meg Whitman, a ex-chefe da Hewlett Packard Enterprise, perdeu depois que a politicagem entre a diretoria deu para trás. Khosrowshahi era o candidato viável que restou. Durante sua apresentação, conhecendo o tipo de pessoa que iria substituir, ele insistiu que tomaria as decisões sozinho. “Não pode haver dois CEOs [presidentes]”, dizia um de seus slides.

Naquele Natal, em uma festa do Uber para a imprensa, Khosrowshahi subiu em uma cadeira para se apresentar e dominou a sala. Khosrowshahi estava, segundo Diller, “no outro lado da lua” em relação a Kalanick, que a princípio manteve seu assento no conselho, mas logo deixou o cargo e vendeu todas as suas ações. (Kalanick não respondeu a um pedido de entrevista.)

Com o mundo dos negócios e da tecnologia assistindo, Khosrowshahi partiu para salvar a reputação do Uber. Primeiro, tentou incutir novos valores na empresa, substituindo mandamentos como “Esteja sempre apressado” por “Fazemos a coisa certa. Ponto”.

Para ajudar nessa transição, ele levou Tony West, um ex-advogado graduado do Departamento de Justiça, como diretor jurídico. Na época, West era advogado-geral da PepsiCo e não tinha intenção de sair, especialmente devido à reputação do Uber. Mas Khosrowshahi conseguiu convencê-lo a fazer o trabalho. “Brincamos que, de uma forma ou de outra, se fôssemos bem-sucedidos ou não, nos tornaríamos um estudo de caso de escola de administração”, diz West. “O Uber era um garoto-propaganda para pessoas que queriam apontar o que havia de errado com a tecnologia.”

Sob Khosrowshahi, o Uber encerrou sua política de arbitragem forçada sobre acusações de assédio ou agressão sexual e resolveu um processo multimilionário de discriminação de funcionários. Uma grande violação de dados, varrida para baixo do tapete na época de Kalanick, foi divulgada ao público. West orquestrou a coleta de dados para um relatório de segurança —publicado em 2019— que detalhava graves incidentes envolvendo motoristas e passageiros do Uber, como 464 relatos de suposto estupro em dois anos nos Estados Unidos. Foi um ato de completa transparência que ainda não foi retribuído por seus rivais.

Uma briga com a Waymo, empresa de automóveis autônomos de propriedade da Alphabet, controladora do Google, talvez tenha marcado a nova era de forma mais clara. O Uber foi acusado pela Waymo de roubar tecnologia de carros autônomos; Kalanick, que foi chamado para testemunhar, foi acusado pela Waymo de conspirar com um engenheiro pioneiro, Anthony Levandowski, para deixar o Google e levar sua tecnologia para o Uber.

Sob a direção de Khosrowshahi, West pressionou por um acordo e em fevereiro de 2018 o conseguiu. Para desistir do caso, a Waymo receberia uma participação de 0,34% no Uber, no valor de US$ 245 milhões (R$ 1,4 bilhão) na época, com a promessa do Uber de nunca usar a tecnologia disputada. Tal acordo teria sido impensável sob Kalanick, que disse que estava “claro que o Uber teria prevalecido” se o processo tivesse continuado.

“Acho que Dara trouxe a supervisão de um adulto muito necessária”, diz Youssef Squali, analista de Wall Street. “Realmente trouxe aquele diplomata que era necessário para conduzir a empresa entre toda a publicidade e as minas terrestres regulatórias que estava encontrando.”

Em 3 de novembro, os californianos vão votar na Proposta 22, uma medida que permitiria ao Uber —e outras empresas com trabalhadores baseados em aplicativos— evitar a transformação de motoristas em funcionários, o que exigiria a oferta de benefícios obrigatórios como auxílio-doença, licença paga, seguro-desemprego e saúde. O Uber atualmente trata seus motoristas como contratados autônomos, freelancers que cobrem seus próprios custos de combustível e manutenção. Se algo der errado, eles terão que se defender sozinhos.

No ano passado, a Califórnia aprovou uma lei que elevou o nível de exigência para empresas que buscam justificar o uso de terceirizados. O Uber e outras empresas da economia gig insistiram que atendiam aos requisitos, mas um tribunal discordou, dizendo que os trabalhadores foram classificados incorretamente.

Uber e Lyft estiveram muito perto de suspender o transporte por aplicativo no estado, enviando alertas para usuários e motoristas em pânico. Parecia uma perspectiva inimaginável no berço da economia gig, e só foi evitada quando um tribunal de apelações concedeu uma suspensão temporária.

Se a Prop 22 falhar, a mensagem é clara: Uber e Lyft terão que reclassificar os motoristas. Isso é impossível, dizem eles, sem aumentar os preços e reduzir muito o número de motoristas na plataforma, principalmente aqueles que fazem relativamente poucas horas por semana.

Para os negócios do Uber, o impacto de uma mudança para um modelo de emprego seria grave. Ives, da Wedbush, está alertando os investidores que um modelo de emprego pode custar ao Uber mais US$ 400 milhões (R$ 2,3 bilhões) por ano se for implementado nos EUA. “E se tiverem de fazer isso globalmente”, diz ele, “o custo poderá aumentar de 30% a 50%.” As perdas totais do Uber no segundo trimestre deste ano, sem ter os motoristas como funcionários, chegaram a quase US$ 1,8 bilhão (R$ 10,4 bilhões).

Caso perca a Prop 22, o Uber discutiu possíveis modelos de franquia com proprietários de frotas locais, em que os motoristas seriam contratados localmente por terceiros, que usariam a plataforma do Uber para fazer negócios. Foi uma estratégia adotada pela FedEx em 2014, quando perdeu uma batalha judicial semelhante entre funcionários e fornecedores.

“Temos um plano de jogo”, diz Khosrowshahi. “Nossa intenção é continuar operando, cumprindo a lei. Não está claro como é esse negócio, e não está claro em quantas cidades poderíamos operar e sob que formato. É o que precisamos descobrir.”

Se a Proposta 22 for aprovada, o caso do procurador-geral está morto e a economia gig é encorajada. O plano de Khosrowshahi —a “terceira via”, como ele diz— isentaria da nova lei as empresas baseadas em aplicativos. Em vez disso, os motoristas permanecem como terceirizados, contribuindo para um fundo de benefícios com base no número de horas trabalhadas. O fundo poderia ser usado para pagar coisas como seguro-saúde básico ou licença remunerada.

Os motoristas terão ganhos garantidos —120% do salário mínimo local—, mas com um detalhe significativo: o Uber não contará o tempo que os motoristas aguardam para encontrar um passageiro. Quando se leva em consideração esse período, sugere um estudo de Berkeley, o mínimo prometido pelo Uber de US$ 15,60 (R$ 90,04) por hora torna-se, em média, apenas US$ 5,64 (R$ 32,55), ajustado pelas despesas do motorista, como combustível. O Uber contesta as conclusões.

Quando Khosrowshahi fala comigo sobre seus planos, já os recitou com tanta frequência que é quase totalmente autônomo —um presidente autônomo unido a seu discurso. “Sempre foi nossa hipótese”, diz ele, “que um grupo de nossa população valoriza a flexibilidade significativamente acima dos benefícios associados ao trabalho tradicional.”

O que acontecer na Califórnia influenciará fortemente a forma como outras jurisdições tratam a economia gig, fato sublinhado pelo financiamento por trás do esforço “Sim para a 22”. Uber, Lyft e outros atores da economia gig investiram juntos mais de US$ 180 milhões (R$ 1,04 bilhão), tornando-a de longe a disputa mais cara da história da Califórnia. A campanha do “Não”, por outro lado, arrecadou quase US$ 20 milhões (R$ 115,4 milhões).

“Quando você olha para quase US$ 200 milhões (R$ 1,2 bilhão) contra US$ 20 milhões (R$ 115,4 milhões), sim, há uma grande lacuna”, diz Cherri Murphy, motorista de aplicativo que faz campanha com Gig Workers Rising, um dos grupos trabalhistas contra a Proposta 22. “Mas o que temos é o poder popular. O resultado final é que Lyft e Uber querem se eximir da responsabilidade de tratar seus funcionários com dignidade e respeito.”

Existem também adversários veementes dentro do próprio Uber. Kurt Nelson, engenheiro que desenvolve seu aplicativo para Android, escreveu um artigo de opinião para o TechCrunch instando seus colegas a votarem Não. Ele tem chamado a atenção para uma cláusula da Proposta 22 que exigiria que sete oitavos da legislatura estadual concordassem antes que quaisquer mudanças pudessem ser feitas no futuro.

“Os engenheiros de software ficariam apavorados se não conseguissem mudar seu código sem que sete oitavos de seus colegas de trabalho concordassem”, ele me diz. “É parte da razão pela qual muitos engenheiros ficam frustrados com o governo e a lei. Eles sentem que é uma burocracia imutável que se altera muito lentamente. E então olhamos para a Proposta 22 —ela foi projetada especificamente para desacelerar as mudanças no futuro.”

As empresas da campanha pelo Sim têm vantagens além do bolso cheio. No dia anterior à nossa entrevista, meu smartwatch emitiu um ping com uma notificação do Uber me pedindo para votar “Sim na 22”. A publicidade Pró-22 persegue os californianos em toda a web. O aplicativo de entrega de comida DoorDash, parte da coalizão, ofereceu aos restaurantes sacolas impressas com a mensagem “Sim”, efetivamente forçando os motoristas de entrega a promover uma medida que vai prejudicá-los, segundo alguns.

Se Khosrowshahi vencer na Proposta 22, novos desafios surgirão. Houve um tempo em que os investidores previam que o Uber alcançaria um valor de mais de US$ 100 bilhões (R$ 577,2 bilhões). Não funcionou assim. O primeiro dia de pregão do Uber, 10 de maio de 2019, estabeleceu uma trajetória infeliz: o preço de suas ações caiu 8%, de um ponto de partida —US$ 45 (R$ 259,73) por ação— que muitos já consideravam decepcionante. Uma rápida recuperação logo se tornou uma queda sustentada à medida que Wall Street perdia a paciência com empresas de tecnologia deficitárias, especialmente após o colapso do WeWork. Os investidores não estavam mais satisfeitos com a disrupção e, em vez disso, queriam saber como o Uber começaria a ganhar dinheiro para eles. Muitos duvidaram que pudesse. No momento em que este artigo foi escrito, o preço das ações do Uber era de aproximadamente US$ 35 (R$ 202,01).

Uma vitória na Prop 22 veria o valor do Uber disparar. Com a regulamentação garantida na Califórnia, a empresa tentaria levar regras semelhantes para o resto dos EUA —e possivelmente ao Reino Unido e à Alemanha, onde os políticos estão igualmente agitados com a divisão entre empregado e contratado. Khosrowshahi diz que o fará de forma proativa. “Gostaria de passar menos tempo no tribunal, se possível”, diz ele. “Mas acho que vamos usar isso como um esboço para um diálogo que temos em uma base local.”

Khosrowshahi também precisa cuidar de sua própria reputação. Ele é frequentemente visto como um executivo fixado no dinheiro, mais à vontade cuidando de portfólios do que cultivando novas tecnologias. Enquanto todos o elogiam por eliminar os piores excessos de Kalanick, há dúvidas sobre suas credenciais como inovador, uma pessoa que pode construir sobre o que o cofundador imperfeito do Uber começou. “As coisas comportamentais que levaram a uma má reputação eram a parte ruim da velha guarda”, disse um ex-executivo. “A parte realmente boa da velha guarda era que todos eram construtores e todos solucionadores de problemas. Dara não é nenhum desses.”

Na verdade, ele passou grande parte do último ano desmantelando grandes partes dos negócios do Uber, saindo de vários mercados onde tinha dificuldade para competir. Nos EUA, tendo perdido terreno na entrega de comida para o rival DoorDash, o Uber fechou um acordo para adquirir o Postmates por US$ 2,65 bilhões (R$ 15,3 bilhões). Quando concluída, a mudança o ajudará a ganhar alguma participação no mercado. Mas a primeira escolha do Uber foi comprar outro serviço, o Grubhub, que foi adquirido pelo grupo europeu Just Eat Takeaway. Khosrowshahi, cuja reputação na Expedia vinha de negociações astutas, parecia ter sido derrotado.

O Uber transferiu seu negócio de ebike, Jump, para o grupo de scooters Lime, em troca de uma participação naquela empresa, e desistiu do Uber Works, sua plataforma de trabalho temporário. Uma fonte confirmou que também estava procurando um parceiro ou uma venda parcial de seu programa Elevate, uma iniciativa para formar uma rede de carros voadores, depois de reportagem neste mês pela Axios.

Em campo, sua unidade autônoma —que já recebeu financiamento externo— fica atrás do Waymo da Alphabet, atualmente utilizado pelo público no Arizona, e do Cruise da GM. O Uber trabalha com tecnologia de direção autônoma desde 2015, a um custo de mais de US$ 2,5 bilhões (R$ 15,4 bilhões) e prejudicado por um acidente fatal em 2018.

Quando sugiro que o Uber escapou de qualquer responsabilidade real por isso, Khosrowshahi exibe uma rara centelha de contrariedade: “Acho que nos responsabilizamos. Paramos as operações e reconstruímos do zero. Acho que isso é responsabilidade”.

Em maio, o Uber anunciou que cortaria quase 7.000 empregos, com 45 escritórios internacionais marcados para fechar ou ser consolidados. A empresa disse que a culpa era da pandemia, mas analistas viram uma empresa atrasada para se enxugar e alcançar a lucratividade.

Para alguns, parecia falta de direção. “Quando se tratou de cortar custos”, disse um ex-diretor, “estávamos aplicando as mesmas medidas a todas as equipes. Cada equipe tinha que cortar 10% do pessoal, ou o que fosse necessário. O que é a definição de não ter uma estratégia clara.”

A mudança contribuiu para a saída de Thuan Pham, diretor de tecnologia da empresa. Dentro das equipes de engenharia, há uma frustração crescente com a decisão de Khosrowshahi de demitir trabalhadores dos EUA enquanto terceirizava responsabilidades para uma equipe em rápido crescimento na Índia. “É algo que acho um tanto insultante”, diz Khosrowshahi sobre a sugestão de que está focado em conseguir mão de obra barata. “San Francisco não tem o monopólio do talento.”

No escritório de San Francisco, ainda há uma sugestão de que o Uber não conseguiu avançar totalmente. Ex-funcionários que trabalharam em estreita colaboração com os dois executivos citam a persistência de uma cultura negativa, embora em evolução, contra as mulheres. “Há sexismo sistêmico no Uber”, disse um ex-diretor. “As mulheres são interrompidas nas reuniões —há um vazio de mulheres na liderança.”

Especialistas falam em particular sobre a decepção em torno da decisão de Khosrowshahi de apoiar o diretor de operações Barney Harford depois que uma reportagem no New York Times em 2018 sugeriu que ele fez comentários inadequados sobre mulheres e minorias. “Acho que isso chocou a todos nós”, disse uma fonte. “Ficamos chocados com a aposta de Dara.”

Após nossa entrevista, o Uber disse que a empresa investigou os comentários de Harford e decidiu que não havia evidências de discriminação. Harford deixou a empresa em junho de 2019 como parte de um remanejamento da direção.

Falando sobre o Uber de forma mais ampla, Khosrowshahi disse: “O maior desafio para nós é combinar nossa cultura agora com muita coisa boa que veio da época de Travis, porque não era de todo mau. Seria conveniente ou dramático dizer que tudo era ruim, mas houve um verdadeiro impulso empresarial. Um verdadeiro impulso inovador”.

Em fevereiro, não muito antes de o mundo mudar, o Uber deu um impulso no preço de suas ações ao prometer que registraria seu primeiro trimestre lucrativo —antes de deduzir juros, impostos e depreciação— até o final do ano. A covid-19 empurrou essa meta para 2021. Mas deu a Khosrowshahi a oportunidade de fazer algo novo e provar seu valor. As medidas de bloqueio significam que a demanda por entregas está fora da curva –um aumento de 103% no segundo trimestre de 2020 em comparação com o ano passado—, graças ao que se espera seja uma mudança permanente nos hábitos de consumo.

Ele acredita que a experiência do Uber em transportar alimentos e pessoas o posicionou para se tornar uma espécie de “superapp”, um conceito popular e lucrativo na China, onde quase toda a vida diária hoje é gerenciada por serviços como o WeChat, que funciona como um portal único para bancos, viagens, jogos e muito mais.

No caso do Uber, isso giraria em torno da entrega. Como seus rivais, está procurando aperfeiçoar os serviços que podem entregar mantimentos e outros itens ao cliente em menos de 30 minutos. “É um longo caminho hoje, mas, certamente, estamos em uma posição única para chegar lá”, diz ele. “Futuramente, posso ver um mundo onde se você quiser tirar dinheiro do banco alguém virá e lhe entregará o dinheiro, certo? Ou qualquer coisa que você queira receber em casa.”

É o tipo de movimento, digo eu, que pode colocá-lo em competição com a Amazon e Jeff Bezos, que é conhecido por ser tudo menos um diplomata. “Sou um bebê em comparação com Jeff”, diz ele. “Não acho que estou em seu nível ainda. Tenho muito trabalho pela frente.”

Fonte: Financial Times | Foto: Luisa Gonzalez – Reuters