Defender os direitos dos trabalhadores é papel da esquerda – Carolina Maria Ruy

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O povo quer 1 bom trabalho. Quer 1 trabalho realizador, com salário que permita consumir além do básico, e seguro do ponto de vista financeiro e sanitário. Quer jornada razoável, menos tempo no trânsito e mais tempo livre. Quer descanso semanal remunerado. Tirar férias e voltar para o trabalho. Tirar licença médica e voltar para o trabalho. Ter filhos e receber apoio para isso. Quer proteção contra a violência. Quer comer bem, cuidar da saúde, ter educação, diversão e arte.

E quer aposentadoria digna.

Em País rico em recursos e que precisa crescer, como o Brasil, isso é o mínimo que todos os trabalhadores deveriam ter. A elite dominante, porém, age para que isso tudo seja sonho distante.

Vivemos 1 tempo de negligenciamento dos direitos sociais e trabalhistas e de normalização do trabalho precário.

Podemos citar a Reforma Trabalhista de 2017 como referência neste processo. A reforma tem grande peso neste negligenciamento. Mas os problemas são muito mais antigos. A desigualdade e a exploração do trabalho são próprias do capitalismo. E esses problemas se acentuaram depois da dissolução da União Soviética e do acirramento do neoliberalismo.

Neoliberalismo que impôs processo de precarização das relações de trabalho e de diminuição da proteção do Estado, acelerando a desarticulação entre os trabalhadores.

Os ataques ao movimento sindical, alvo preferencial da lógica capitalista, também se acirraram neste contexto. A elite dominante, com ajuda da sua imprensa privada, faz de tudo para desmoralizar os sindicatos, expressando seu desprezo ao povo trabalhador, e tramando leis que ferem a CLT e a Constituição de 1988.

Empreendedorismo
Eles tentam a todo custo nos convencer que “moderno” é o trabalho nos moldes da República Velha, com jornadas de até 14 horas por dia sem férias, sem descanso semanal remunerado, sem 13º, sem segurança e sem Previdência. É o que acontece com os entregadores intermediados por empresas bilionárias como o IFood.

Para camuflar a sistemática retirada de direitos, a tradicional exploração ganha novos vernizes: falam em “transformações profundas no mundo no trabalho”, tratam de “novas tecnologias” como algo místico e criam nomes arrojados como “empreendedorismo”.

Chamam de empreendedorismo desde grandes indústrias, passando por produções caseiras, até autônomos que trabalham para empresas por meio da pejotização. E isso não é confusão, é fraude, como expôs o ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino1:

“Nós temos um vendedor de sapato, pessoa física, no mês seguinte, ele virou pessoa jurídica. Isso é pejotização, não é terceirização. São coisas diferentes que estão caindo no mesmo balaio. E qual é o problema? Isso não é apenas 1 fraude contra os direitos trabalhistas. Isso é 1 fraude contra o erário. Porque a carga tributária e a carga previdenciária são menores na pejotização. (…) E o que vai acontecer? Esse pejotizado vai envelhecer e não terá aposentadoria, vai sofrer 1 acidente de trabalho, e não terá benefício previdenciário. Se for 1 mulher, vai engravidar, eventualmente, e não terá licença gestante. Esse é o problema. Eu acho que nós tínhamos que revisitar o tema, não para rever a jurisprudência. Mas para delimitar até onde ela vai. Porque vamos virar 1 Nação de pejotizados. Isso tem a ver com fraudes que estão se generalizando”.

Luta de classes é isso
Enaltecida pela imprensa burguesa, a ideia de que o “novo” trabalhador é ou quer ser “empreendedor”, se espalhou como praga depois da reforma de 2017.

Por exemplo, em vídeo do site UOL, do dia 11/102, o jornalista Josias de Souza diz que o morador da periferia não pode mais “sonhar” com a CLT, porque: “a realidade não orna mais com a dos 2 primeiros mandatos [de Lula] que aproximava a esquerda da década de 1980”.

Ele diz que eleitores da periferia “estão ‘se virando’ para conseguir fontes de renda alternativas depois que foram expurgados do mercado de trabalho” e não vê isso como um problema social, mas como algo que exige uma “atualização do discurso”.

Nas palavras dele:

“Não adianta ficar imaginando que esse eleitor vai ganhar uma carteira assinada. Que eles vão se sindicalizar, e que vão ajudar a alimentar aquela estrutura sindical que empurrava o PT e outras legendas de esquerda, que se escoravam no velho sindicalismo da década de 1980. Então há muito por fazer para atualizar esse discurso de esquerda, para reconectar o Lula e os seus aliados com as novas necessidades do eleitorado pobre”.

Na mesma linha, o jornalista Fabiano Lana, em artigo com nome sugestivo “Para reconquistar mentes e corações, a esquerda terá de jogar seus dogmas no lixo”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 16 de outubro, disse que é preciso “jogar no lixo a nostalgia de implantar algum tipo de socialismo no Brasil” e que esta “nostalgia” deve ser substituída por “capitalismo popular inclusivo”.

Ele vai mais longe em seus devaneios:

“Em primeiro lugar, o conceito de luta de classes, tratado quase como se fosse um integrante da Santíssima Trindade para 1 militante esquerdista, não tem aderência entre os atuais emergentes brasileiros. Não se busca mais ser contra o rico, antes explorador e beneficiário da mais valia. O que se quer é entrar no clube dos mais prósperos também”, escreve.

Claro, como colocado no início, o trabalhador quer prosperar. Fabiano Lana não entendeu que a luta de classes é sobre isso. Não se trata de estereotipo marxista, mas sim de realidade que se materializa nas perdas de direitos e rendimentos por 1 lado, e na luta política, social e sindical, por outro. Perder direitos é deixar de prosperar.

No submundo da precarização, que engloba entregadores de IFood e uberizados em geral, a contradição entre a força de trabalho e os donos do capital tem a mesma raiz da que havia nas fábricas insalubres do início da industrialização, lotadas de homens, mulheres, crianças e idosos condenados à vida miserável.

Por isso, ao contrário da pregação do mercado, o sindicalismo é 1 das forças mais modernas e civilizatórias. Sua expressão está no dia a dia dos trabalhadores e das famílias, e sua força deve ser medida pelo número de pessoas beneficiadas pelos acordos coletivos e salariais, e pelos serviços que os sindicatos oferecem.

Força raramente observada
Basta observar a realidade para constatar que empregos com direitos são muito mais prósperos e seguros, tanto para o empregado quanto para o País. Dados recentes (de outubro de 2024) do salariômetro, elaborado pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), mostram que as negociações salariais têm sido amplamente favoráveis, superando o INPC (Índice Nacional de Preço ao Consumidor).

Matéria do Estado de São Paulo3 mostra que em cenário de baixo desemprego (em 31 de outubro a taxa de desocupação divulgada pelo IBGE foi de 6,4%), muitos brasileiros veem “o seu poder de barganha aumentar no mercado de trabalho”.

Segundo a matéria: “profissionais de diversas áreas estão trocando de empresas e conseguindo aumentos salariais acima da inflação. Essa combinação dá ao trabalhador uma força raramente observada e que tem levado empresas a adotarem diferentes estratégias para evitar a fuga da mão de obra”.

Será que, neste contexto, o morador da periferia não pode sonhar com a CLT?

A matéria menciona também pesquisa realizada pela empresa de recrutamento Robert Half, que aponta que “57% das pessoas entrevistadas disseram valorizar mais um bom pacote de benefício do que o salário em si”, destacando “plano de desenvolvimento profissional, ambiente de trabalho saudável, flexibilidade e melhores benefícios, sobretudo aqueles voltados para o bem-estar”.

São dados que revelam toda a incoerência do discurso do fim da CLT e da gradual e fatal substituição pelo empreendedorismo.

E hoje, com a maior industrialização, o governo tem condições de fomentar a geração de bons empregos, com direitos, construindo desenvolvimento consistente e duradouro.

Fetichismo
Os jornalistas Josias de Souza e Fabiano Lana ofendem movimentos sociais, sindicato e partidos de esquerda ao argumentarem que neste campo defendem-se ideias envelhecidas, envolvidas em ideologias que não correspondem ao mundo atual.

Mas os argumentos que eles utilizam, ao pressuporem que o mundo “é assim” e, por estar preso a alguma suposta lei da física, não pode mudar, não passam de fetiches, que é o pior tipo de doutrinação ideológica que o capitalismo usa para se perpetuar.

É erro dizer que os brasileiros “querem” relações informais de trabalho e rejeitam direitos trabalhistas. Essa é falácia que nasceu do discurso, propagado pela elite dominante, de que o trabalho com Carteira assinada se tornou ideal inalcançável.

Governo progressista deve romper com dogmas da economia de mercado que levam os trabalhadores a deduzirem que vale a pena abrir mão de direitos. Ao invés de normalizar a precariedade, deve mudar a forma como a situação está colocada. E, por meio do fomento à industrialização, ao setor de serviços, à pesquisa e tecnologia, mostrar para o povo que é possível avançar sem perder direitos. É possível que haja empregabilidade, boa remuneração e flexibilidade de horário dentro do mercado formal, para que o povo seja incluído neste avanço.

Cabe à esquerda atualizar permanentemente a luta de classes vislumbrando os caminhos possíveis para as mudanças necessárias. E defender os trabalhadores, cuja segurança frente à contradição entre o capital e o trabalho ainda reside na legislação trabalhista, nas convenções coletivas e na organização sindical.

(*)Carolina Maria Ruy. Jornalista. É coordenadora do CMS (Centro de Memória Sindical)