Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional a Medida Provisória 1.063 de 2021, que dispõe sobre as operações de compra e venda de álcool, a comercialização de combustíveis por revendedor varejista e a incidência da Contribuição para o Programa de Integração Social e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) nas referidas operações.
Apresentadas as emendas, vale ressaltar a de número 18, do deputado federal Kim Kataguiri, propondo a inclusão do artigo 68-E ao texto original e revogando a Lei 9.956/2000.
A ideia é, basicamente, permitir que os revendedores de combustíveis possam “oferecer serviço parcial ou integralmente automatizado de operação de bombas de combustível, dispensando a intervenção de frentistas ou qualquer outro profissional”, retirando do ordenamento jurídico a regra pela qual se proibiu “o funcionamento de bombas de auto-serviço operadas pelo próprio consumidor nos postos de abastecimento de combustíveis, em todo o território nacional”.
Para tanto, apresentou-se a seguinte “justificação”:
“O preço dos combustíveis no Brasil atingiu níveis alarmantes, gerando enorme pressão inflacionária e insatisfação popular. Para mitigar tal problema, a Medida Provisória 1.
063 tenta liberalizar o mercado de combustíveis, que ainda tem muitos entraves governamentais.
Ocorre que um dos fatores que contribuem para a formação de preços é o fato dos postos de combustíveis terem que usar a mão de obra de frentistas, coisa que não ocorre em outros países, em que há os chamados postos ‘self service’. A Lei 9.956 obriga os postos de combustíveis a utilizarem frentistas, encarecendo os custos do posto e, consequentemente, do combustível.
Com esta emenda, pretendemos revogar a Lei 9.956 de 2000, permitindo que os postos de gasolina possam operar de forma automatizada, sem frentistas.
Com isso, pretendemos reduzir o valor dos combustíveis”.
A questão, obviamente, é exemplar dos impactos da automação no mercado de trabalho, valendo lembrar que, no caso específico, o debate não é novo, já sendo realidade em diversos países a extinção da profissão de frentista. Com uma pequena adaptação nas bombas de combustíveis, o próprio consumidor consegue realizar a operação.
O problema, portanto, não diz respeito à possibilidade desta modificação, nem de sua oportunidade, pois não se pode tentar, por lei, manter postos de trabalho tal qual um retrato estático da realidade social. Fosse assim, ainda teríamos cocheiros, operador de telégrafo e um sem número de profissões extintas com o avançar da tecnologia.
O cerne deste dilema, na verdade, concerne em realizar a extinção desta profissão obsoleta em observância ao texto Constitucional, que determina o cumprimento de uma ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o objetivo de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170 da CF).
Determina a Constituição, ainda, a proteção em face da automação, na forma da lei, como direito fundamental dos trabalhadores (artigo 7º, XXVII), o que vincula o Poder Legislativo a implementar as necessárias evoluções do mercado de trabalho com alternativas para assegurar a dignidade do ser humano trabalhador.
A extinção pura e simples da profissão de frentista possui o potencial de desempregar 500 mil trabalhadores, segundo notícia publicada no jornal O Dia, sem criar nenhum tipo de absorção desta mão de obra, ou sequer pensar em algum modelo paulatino para que os trabalhadores possam se adaptar à nova realidade.
Novamente, repita-se, não se trata de defender a manutenção de profissões que não mais se justificam, mas de gerar a reflexão, para a sociedade, de como o Brasil deve trilhar este caminho inexorável que pode afetar, para além dos frentistas, boa parte dos empregados atuais no país.
Há diversas estimativas quanto ao potencial da substituição do ser humano pela automação e inteligência artificial (veja interessante reportagem publicada pela Agência Brasil), algumas mais pessimistas, que chegam a falar na perda de cerca de 50% dos postos de trabalho, outras otimistas, apostando no deslocamento da mão de obra para profissões diversas.
Existe consenso, entretanto, que o impacto é violento e com potencial extremamente agressivo para o mundo do trabalho, mormente quando se observa que os novos postos de trabalho que surgem após o incremento de novas tecnologias tendem a requerer certo grau de instrução, com a qualificação profissional adequada e nível de educação compatível, fatores que, em nosso país, ainda não foram implementados.
Vivemos, e não é exagero, um momento compatível com a desordem criada pela primeira Revolução Industrial, tateando as novas formas de trabalho em busca da proteção adequada ao ser humano, na tentativa de não revivermos uma nefasta história de exploração, precarização e violação de direitos humanos.
Por isso, todas as atenções devem ser voltadas para a proposta em análise neste texto, para que possamos realizar a necessária evolução do mercado de trabalho de forma consistente e cumprindo os valores emanados pela Constituição.
Pode parecer exagero, e não costumo usar argumentos apelativos, mas em entrevista hoje pela manhã na Rádio Nação Brasil 1440 AM, onde debati o tema, o apresentador, Vivaldo Barbosa, fez uma analogia que me pareceu adequada, rememorando a abolição dos escravos sem nenhum programa para sua integração social.
Simplesmente liberar os frentistas, ou demais profissões, do trabalho pelo incremento da automação e da inteligência artificial, é optar pela pior face do avanço tecnológico, que deveria estar sendo utilizado para promover a economia do país e, consequentemente, o bem estar do brasileiro.
Enquanto não recriarmos os pilares da sociedade, atualmente calcados no primado trabalho como forma de inserção social, enquanto não houver acesso aos bens mínimos para uma existência digna independentemente do trabalho, enquanto não vivenciarmos plenamente uma sociedade fraterna, qualquer mudança deve se dar paulatinamente, dentro de um programa que gere novas alternativas para o trabalhador.
Urge, portanto, que voltemos nossa atenção para os debates no Congresso Nacional sobre a emenda 18 da MP 1063/2021. Hoje são os frentistas. Amanhã os caixas de supermercado. Depois de amanhã, os bancários. Quando menos percebermos, estaremos todos livres do trabalho. E com fome.