Hesitei em intitular este artigo. Primeiro, acudiu-me a ideia de encimar o texto com o título O Futuro do Trabalho. Rapidamente meu inconsciente suscitou uma advertência: por acaso o senhor tem certezas sobre o trabalho do futuro? Reconheci que o tema está inçado de incertezas.
Por isso, ouso invocar algumas ideias que desenvolvi com Gabriel Galípolo no livro A Escassez na Abundância Capitalista. O título do livro é paradoxal, assim como o paradoxo da produtividade apontado pelo relatório Compendium of Productivity Indicators 2018, da OCDE: “A despeito da retomada do crescimento na maioria dos países da OCDE, o maior peso de empregos de baixa produtividade reduziu os salários reais na economia como um todo”.
O paradoxo revela que a aceleração do progresso tecnológico deslocou um contingente significativo de trabalhadores para atividades de baixa qualificação, o que deprime a produtividade e, também, a capacidade de consumo dos trabalhadores submetidos ao emprego precário.
Em seu rastro de vitórias, as legiões do progresso tecnológico deixam uma procissão de desgraças: além do desemprego, promovem a crescente insegurança e precariedade das novas formas de ocupação, a queda dos salários reais, a exclusão social.
Em Phenomenology of The End, o filósofo Franco Bifo Berardi desvenda essas transformações: “O capital deixou de alugar a força de trabalho das pessoas, mas compra ‘pacotes de tempo’, separados de seus proprietários ocasionais e intercambiáveis. O tempo despersonalizado tornou-se o agente real do processo de valorização e o tempo despersonalizado não tem direitos nem demandas. Apenas deve estar disponível ou indisponível, mas essa alternativa é meramente teórica porque o corpo físico, a despeito de desconsiderado juridicamente, ainda tem de se alimentar e pagar aluguel”.
À sua maneira, Bifo Berardi aponta para uma transformação crucial nas relações de trabalho no capitalismo contemporâneo. O progresso tecnológico da inteligência artificial, da internet das coisas e da robótica promove a dissolução das relações de assalariamento, o dito “emprego formal” que sustentou essas relações ao longo dos séculos de evolução da assim chamada economia de mercado.
Isso não significa, porém, que os trabalhadores ganhem mais independência e autonomia, tempo livre e outras delícias embutidas no rol de possibilidades desse sistema paradoxal. Muito ao contrário, acentuam-se as dependências das grandes estruturas monopolistas que surgem das transformações tecnológicas e organizacionais. São os grilhões da liberdade.
O fenômeno do surgimento e multiplicação das chamadas plataformas digitais invade o espaço ocupado pelo comércio, pela finança, pelos serviços, pela publicidade e pela produção. As empresas de plataforma têm um papel cada vez mais importante nas economias contemporâneas. Além dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as plataformas ocupam outros setores como finança, hotelaria, transportes, comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida em domicílio.
Outrora apoiado em edificações distribuídas pelos espaços físicos nas cidades e arredores, o comércio – atacado e varejo – baseado no contato pessoal entre funcionários vendedores e clientes vem sendo substituído pelo e-commerce, que coloca os clientes em contato direto com as mercadorias. Estão em risco as cadeias de lojas distribuídas pelo espaço urbano, os shopping centers, restaurantes e casas de entretenimento.
Os bancos e as demais instituições financeiras reduzem as agências e os serviços prestados pessoalmente por gerentes e funcionários. Os serviços bancários são terceirizados para agentes autônomos, sem relações de trabalho formais com as plataformas que funcionam como um centro de controle das atividades.
Ao contrário do que sugerem as versões disseminadas pelo senso comum, essas plataformas facilitam a concentração bancária. São transformadas em braços mercantis das grandes instituições financeiras. As chamadas fintechs, apresentadas como um avanço para a maior competitividade, transformam-se, na verdade, em operadoras das grandes instituições bancárias e financeiras.
Os trabalhadores autônomos, empreendedores de si mesmos, assumem os riscos da atividade – investimento, clientela – mas estão submetidos ao controle da plataforma na fixação de preços e repartição dos resultados.
Essa organização do trabalho foi predominante nos primórdios do capitalismo manufatureiro da era mercantilista, sob a forma do putting-out system. Os comerciantes forneciam a matéria-prima para os artesãos “autônomos” que estavam obrigados a entregar o produto manufaturado em determinado período. O salário por hora de Paulo Guedes é uma tentativa de restaurar as relações de trabalho do mercantilismo.
O capitalismo das plataformas transforma a possibilidade do tempo livre na ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, na precarização e empobrecimento do óleo queimado que sobrevive na bolha cada vez mais inflada dos trabalhadores em tempo parcial.