Milhões de mulheres vivenciam, no seu cotidiano, as mais diversas situações de desigualdade e discriminação. E quando se soma à questão do sexo, a variável raça/cor, há um aprofundamento dessa desigualdade. Mulheres negras carregam a dupla discriminação, por sexo e cor. E essa violência se aprofundou nos últimos anos, com o governo machista e misógino.
As mulheres são a maioria na população brasileira, representam 51%, mas elas estão sub-representadas nos espaços políticos e de poder e entre as lideranças.
Essa menor presença feminina se reflete em uma legislação que não avança no enfrentamento desta desigualdade, não incorpora medidas e ações efetivas contra a violência, a discriminação e o assédio sofrido. As mulheres são alvo de violência doméstica, causada, na maior parte das vezes, por companheiros, maridos ou namorados: Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública[1], uma mulher foi assassinada a cada 6 horas apenas no primeiro semestre de 2022. No total desse período, 699 mulheres foram mortas em situações de violência doméstica ou devido a questões que envolvem desdém ou discriminação à condição de mulher, crime denominado de feminicídio[2].
Todas estas situações se reproduzem também no mercado de trabalho. Então, a mulher, quando busca uma colocação ou quando empregada, vivencia condições diferentes (piores) de oportunidades de progressão na carreira, de inserção e de remuneração. E as estatísticas captam parte dessa desigualdade: a força de trabalho no 3º trimestre de 2022, segundo dados da PNADC (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) indicou que 44% da força de trabalho, que expressa a soma de ocupados e desempregados, era composta por mulheres. Mas entre o total de desempregados, as mulheres eram maioria (55%). Além disso, do total de mulheres ocupadas, a proporção de subocupadas, ou seja, que trabalharam menos de 40 horas, mas gostariam (precisariam) de trabalhar mais, foi superior à dos homens: 7,8% delas estavam nessa condição, enquanto entre os homens, o percentual ficou em 5,1%. Quando se acrescenta a variável cor/raça, nota-se que, entre as negras, a situação é pior: o percentual de mulheres negras subocupadas foi 9,3% maior do que o registrado entre as não negras, que ficou em 6,1%. Maiores desalento, desocupação e subocupação fizeram com que a taxa de subutilização[3] das mulheres fosse de 25,3%, enquanto para os homens, estava na casa de 15,9%. Entre as negras, a taxa ficou em 30,2% e, entre as não negras, em 19,2%.
Ainda, em termos de rendimento médio do trabalho, as mulheres receberam, em média, 21,0% a menos do que os homens – o equivalente a R$ 2.305 para elas e a R$ 2.909 para eles. E essa diferença ocorre mesmo em setores de atividade em que as mulheres são a maioria: Nos serviços domésticos, as trabalhadoras representavam cerca de 91,0% dos ocupados e o salário foi 20,0% menor do que o dos homens. No grupamento educação, saúde e serviços sociais, elas totalizaram 75,0% dos ocupados e tinham rendimentos médios 32,0% menores do que os recebidos pelos homens.
Essa desigualdade de inserção e ocupação é ainda mais perversa, uma vez que se reflete na família e determinando o nível de bem-estar familiar, a forma como se dá a inserção de cada membro e a possibilidade de acesso a bens e serviços básicos.
Sabe-se que ao longo dos anos, devido às mudanças na dinâmica familiar e do domicílio e pela maior presença da mulher no mercado de trabalho, a composição considerada “tradicional”, de chefe, cônjuge e filhos, teve sua importância relativa reduzida, enquanto houve elevação do número de arranjos de casais sem filhos, núcleos unipessoais e famílias monoparentais com filhos ou parentes.
Interessante ver que, segundo os dados da Pnad C trimestral, houve queda relativa do arranjo casal com filhos, que passou de 43,8% para 40,2%, entre os 3º trimestres de 2019 e de 2022. Os casais sem filhos saíram de 18,3% para 19,0% nesse mesmo período. Os arranjos unipessoais masculinos e femininos representaram 9,1% e 7,4%, respectivamente, no 3º trimestre de 2022, superiores aos percentuais de 2019 (8,1% para os homens e 7,0%, para as mulheres). As famílias monoparentais com filhos e chefia feminina representaram cerca de 14,7% dos arranjos – muito mais comuns do que aquelas com chefia masculina, que representavam 2,3% em 2022.
Quando se olha os domicílios chefiados por mulheres, um pouco mais de um terço era de arranjos familiares com filhos (34,2%), 29,0% de famílias monoparentais com filhos, 14,6% de casais sem filhos e 14,6% de famílias unipessoais, no 3º trimestre de 2022.
O que mais chamou a atenção foi a fragilidade em termos de renda dos arranjos monoparentais chefiados por mulheres sem a presença de um cônjuge e com filhos, a renda do trabalho do domicílio e a renda per capita foram as menores entre os arranjos analisados.
No 3º trimestre de 2022, esse tipo de arranjo somou 11,053 milhões de famílias, 61,7% chefiadas por negras (equivalente a 6,8 milhões) e 38,3%, por não negras (que representavam 4,2 milhões). O rendimento médio do trabalho para esse tipo de arranjo foi de R$ 2.833, e a renda do trabalho per capita, R$ 789, pouco mais do que meio salário mínimo por pessoa. Esse valor é quase o mesmo do custo individual de uma cesta básica no município de São Paulo, no mês de setembro de 2022 (R$ 750,74).
Ainda, 22,4% das famílias monoparentais chefiadas por mulheres não tinham rendimento do trabalho; 25,6% ganhavam até 1 salário mínimo; e 22,3%, entre 1 e 2 salários. A proporção de famílias chefiadas por negras que ganhavam 1 salário mínimo ou menos foi de 53,6%, enquanto ficou em 38,7% entre as lideradas por não negras, no 3º trimestre de 2022. A renda per capita do
Os indicadores mostraram o que se vivencia na prática: um contingente de mulheres que ganha menos, se insere de forma precária e leva mais tempo em busca de colocação no mercado de trabalho. Esse quadro faz com seja perpetuada a situação de vulnerabilidade não só da mulher chefe de família, mas de todos os familiares, com a transferência de milhares de crianças e jovens da escola para o mercado de trabalho, para que contribuam com a renda da família.
Uma sociedade que aceita a desigualdade de gênero, reproduz e reafirma esse desequilíbrio já existente em todas as esferas da sociedade, sob a forma do machismo.
A partir dos papéis atribuídos a homens e mulheres, negros e negros, desenham-se as desigualdades e as relações de poder, seja econômico, sexual ou político. O caminho para essa mudança passa pelo debate de temas importantes como compartilhamento familiar, pelo reforço nas negociações coletivas, pela aceitação de que a desigualdade de gênero não é apenas um problema da mulher, mas sim, uma questão social que precisa ser falada, discutida, repensada e mais, presente em todas as formulações de políticas públicas, de forma transversal.
Patricia Pelatieri, economista, diretora técnica adjunta do Dieese