Viagem às origens da Saúde Pública, que o ministro Pazzuello confessa não conhecer. Em 1979, sanitaristas críticos desafiaram a ditadura ao propor superar a assistência e passar ao Comum. Um dos participantes narra como foi
Por Paulo Amarante – Instigado a escrever este texto fui tomado por uma forte recordação: a viagem da “delegação” do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) a Brasília, para participar do I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos Deputados, em outubro de 1979. O CEBES tinha sido criado muito recentemente, em 1976, por iniciativa de David Capistrano, José Ruben de Alcântara Bonfim, dentre outros, com o objetivo de ser um espaço de reflexão crítica sobre as questões relativas à saúde em suas dimensões políticas, sociais e econômicas.
Para alcançar tal objetivo, foi criada a revista Saúde em Debate, da qual tive a enorme gratificação de ter sido editor por vários anos, e que existe, ainda hoje, assim como o próprio CEBES, como uma referência fundamental para o pensamento crítico em saúde.
O CEBES contribuiu para a constituição do que passou a ser denominado de “movimento sanitário”, também conhecido como “partido sanitário”, em consequência de sua potência organizativa e mobilizadora. Uma das contribuições deste coletivo foi introduzir a possibilidade de se pensar a saúde não como mero tratamento de doenças, nem como a abstrata definição da OMS, de um “completo estado de bem-estar biopsicossocial”, ou coisa do gênero, mas de historicizar esta condição. Passou-se a considerar o binômio “saúde/doença” como um processo histórico, multicausal, dinâmico, sobredeterminado por variáveis que transcendem aquelas tradicionais do modelo médico-clínico ou epidemiológico, trazendo assim à discussão a concepção da “determinação social do processo saúde/doença”. Iniciava-se, desta forma, a superação das definições da própria OMS, que culminariam com os conceitos de “determinantes sociais” e de “promoção da saúde” expressos na Carta de Ottawa. Isto porque, enquanto a ideia de “determinantes sociais” remete a relações mais ou menos óbvias de causalidade social, onde os ditos “fatores sociais” estavam presentes de forma isolada, “individualizados”, num contexto teórico causa-efeito, oriundo das tradições mecanicistas uni-causais, inspiradas em Newton, Descartes e Kant, sem qualquer teoria social que lhes fornecesse historicidade, e sem possibilidade de considerar as múltiplas determinações do processo. Enfim, é de posse destas concepções que o CEBES parte com sua “delegação” para Brasília para apresentar um documento que faria história nas políticas públicas no Brasil. Assim sendo, muitos anos da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde (realizada em 1986, sobre a presidência de Sérgio Arouca) e da Constituição de 1988, a proposta de um Sistema Único de Saúde (SUS) foi apresentada no referido simpósio de saúde, por intermédio do próprio Sérgio Arouca, então presidente do CEBES.
É importante ressaltar, no entanto, que o documento não se intitulava “por uma nova política de saúde”, ou “uma proposta de reformulação do modelo de saúde”, ou algo assim, mas “A questão democrática na área da saúde”! A observação é importante por vários motivos: desde o fato de conter no título a referência à democracia em pleno governo militar, quanto pelo fato de tal expressão ser destacada como aspecto nuclear da questão da saúde. Com as referências políticas e sociais anteriormente abordadas, embora de maneira breve, a proposta de um Sistema Único de Saúde viria revolucionar a forma de pensar o tema no país. Saúde e democracia passaram a ser relacionadas.
Saúde é democracia; democracia é saúde! Saúde deixaria de ser entendida exclusivamente como tratamento de doenças ou promoção de hábitos saudáveis de vida, para ser compreendida a partir do modo de produção da vida, das condições materiais e simbólicas de viver, trabalhar, conviver e coabitar os espaços e as instituições. Desta forma, passaram a vigorar ideias relacionadas à saúde enquanto qualidade de vida (embora atualmente possam parecer princípios óbvios e banais) e saúde como processo civilizatório, dentre outros, e promoção da saúde passou a ser entendida como defesa das condições reais e concretas de vida, trabalho, educação cultura, moradia, transporte, segurança, direitos humanos e sociais.
E neste contexto histórico de luta pela redemocratização do país e de construção de um projeto nacional comum, construído e coabitado coletivamente, que foi proposto o SUS como um projeto que, em primeiro lugar, deveria garantir a saúde como um direito de todos e um dever do estado, o que viria a ser aprovado na Constituição de 88 no capítulo sobre a saúde, posteriormente regulamentado na Lei Orgânica da Saúde (Leis 8.089/90 e 8.142/90). Para aqueles que não conheceram o sistema de saúde antes do SUS é muito difícil conceber a possibilidade de um modelo altamente elitizado, privatista e excludente, ao mesmo tempo que especialístico, curativista e hospitalocêntrico.
Somente os mais ricos acessavam determinados recursos da saúde ou os “previdenciários”, que tinham direito aos serviços próprios ou conveniados pela Previdência Social. Os demais eram indigentes, miseráveis, à mercê da caridade pública ou a boa vontade do Estado!
A universalidade implicaria também em acessibilidade. O sistema deveria garantir que, para ser universal, fosse acessível por todos. Por outro lado, um dos princípios do SUS era o da integralidade das ações, de tal forma que não se desmembrasse o processo social complexo da determinação social entre físico e psíquico, entre social e biológico e questões desta natureza. E o último aspecto abordado neste breve texto é o da participação social no sistema. Enquanto um sistema público, social, comum à toda a sociedade, sua construção seus princípios éticos, políticos ou operacionais deveriam contar com a participação ativa da sociedade, de toda a sociedade, na medida do possível a partir de critérios transparentes e acessíveis de participação. É neste sentido que se passa a desenvolver um amplo processo social de participação e controle social no âmbito do SUS, através da instalação dos Conselhos de Saúde, existentes nos níveis municipal, estadual e nacional, com critérios claros e igualitários de participação de representantes da sociedade, eleitos democraticamente por seus pares, e de representantes dos prestadores de serviços e do estado. Os Conselhos teriam como missão definir as bases, os princípios e prioridades das políticas de saúde no âmbito de seus territórios e abrangência. Por outro lado, foram instituídas as Conferências de Saúde como um processo de consulta e construção social, e não como um congresso de autoridades e efemérides, como ocorreu até a VII Conferência. Foi por ocasião de sua nomeação como presidente da VIII Conferência que Sérgio Arouca propôs mudar para algarismos arábicos (8ª), com isto simbolizando todo um processo de transformação social e político do caráter do acontecimento, em que seria mais compreensível e participativo.
Antes da 8ª as conferências eram reuniões palacianas, da qual participavam ministros e outras autoridades, além de alguns representantes das entidades (especialmente patronais). A partir de então seria um processo participativo amplo, iniciado nos locais de trabalho, onde as questões eram debatidas e os representantes para as etapas posteriores eram eleitos, desdobrando-se em conferências municipais, depois estaduais e, finamente, na etapa nacional. Sempre com estes princípios da discussão coletiva, com eleições em caráter paritário e representativo da multiplicidade de visões e contextos. Não se tratava “apenas” de um processo de construção de novas leis, normas e regulamentações, mas de um processo instituinte, permanente, de construção de pensamento crítico, de tomada de consciência, ou de construção de “consciência sanitária”, nas palavras de Giovanni Berlinguer, referente político e teórico do CEBES, que havia editado no ano anterior o seu livro “Medicina e Política” na coleção Saúde em Debate.
No âmbito específico da saúde mental e reforma psiquiátrica uma das principais referências foi o da “Psiquiatria Democrática”, movimento inaugurado sob a liderança do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que também adotou como princípios a questão do direito, das liberdades, do protagonismo das pessoas em sofrimento mental. Por ocasião da mesa destinada a esta discussão serão abordados aspectos do campo da saúde mental e atenção psicossocial no contexto da pandemia, que contribuem para a resistência aos processos de patologização das experiências e do sofrimento psíquico causado pelo confinamento e isolamento sanitário e para as estratégias de valorização das respostas dos sujeitos e coletivos envolvidos. O processo da reforma psiquiátrica brasileira é considerado por vários atores e autores como um caso exemplar de boa implantação do SUS!
Enfim, procuro demarcar a importância do projeto político, democrático, participativo proposto com o advento do SUS e da Reforma Psiquiátrica. Mas, na prática, começaram a surgir problemas: as tentativas de revogação da Lei Orgânica da Saúde ainda no governo Collor, e as restrições ao financiamento do sistema que serão perpetuadas em todos os governos posteriores, inclusive com claros indicadores de desfinanciamento; o privilégio dado ao setor privado, seja por meio das Agências Reguladoras (instituídas no período FHC mas mantidas nas gestões posteriores), especialmente a ANSS que francamente foi tomada de assalto pelo setor que ela deveria regular; a isenção e renúncia fiscal a planos de saúde e aos setores da saúde filantrópica e privada de maneira geral, que se fortaleceram em oposição e concorrência real ao SUS e que fortaleceram a concepção da ineficácia e inviabilidade do sistema público, público e universal, mesmo por lideranças sindicais, partidárias e sociais de trabalhadores; a não renovação da CPMF; a não regulação da EC 29; a priorização de terceirização tanto da gestão de serviços equipamentos e dispositivos (notadamente nas áreas de dois setores que seriam exemplos de ruptura paradigmática do modelo biomédico como a atenção psicossocial e a estratégia saúde da família), quanto da terceirização e consequentemente precarização da mão de obra no campo da saúde, ao invés de constituir um quadro de estado de trabalhadores da saúde; a irregularidade na realização das conferências, com destaque para a não convocação das conferências específicas (que deveriam ser convocadas por seu caráter de políticas setoriais – tais como de saúde mental, saúde do trabalhador e outras), a falta de poder decisório dos conselhos de saúde, dos municipais ao nacional, que, de forma a agravar a situação, eram também convocados de forma irregular ao bel prazer dos gestores correspondentes, e sem prestígio e reconhecimento político.
Enfim, com toda a oposição, o desfinanciamento, a persistência de uma mídia explicitamente contrária ao sucesso das políticas públicas, o desprestígio e a negação do protagonismo da participação, o SUS resistiu e segue resistindo. Nos processos participativos nos conselhos nas conferências, nas entidades associativas, com destaque para o já citado CEBES, mas também a Abrasco, a Abrase, o movimento sanitário e de reforma psiquiátrica, conseguiu implantar um compromisso ético com os princípios da saúde coletiva, da saúde como democracia, como direito da saúde, como dever do estado. E o SUS sobrevive fundamentalmente raças a esta ideia do comum, do coletivo, da saúde como promoção e defesa da vida. É por isto que neste contexto de pandemia o SUS maltrapilho e esfarrapado com todos os ataques que tem sofrido ao longo de sua história levantou das cinzas e demonstrou sua capacidade de prestar cuidado, sua capacidade de respeito à vida, de escuta, de solidariedade. E de posse desta constatação de que o estrago, as mortes, as perdas, as sequelas, seriam muito piores se não houvesse o SUS, é que devemos nos colocar totalmente em sua defesa neste momento e no pós-pandemia. É o momento de escrever em nossas agendas e de inserir em nossas lutas cotidianas a cobrança do compromisso do Estado, do Legislativo, do Judiciário, da sociedade em geral a necessidade vital de defesa do SUS, enquanto princípios e práticas revolucionárias do comum, que resistem aos modos capitalistas de destruição da vida coletiva.
Fonte: Outras Palavras