Desdém com segurança alimentar explica alta dos preços

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A inflação dos alimentos voltou a assombrar os brasileiros e a tomar as manchetes nos últimos meses. Diante do aumento dos preços, o presidente da República, Jair Bolsonaro, saiu pedindo aos donos de supermercados que fossem patriotas e não aumentassem os valores dos itens básicos de alimentação.

Dias depois, o vice-presidente, Hamilton Mourão, culpou o Auxílio Emergencial, pago pelo governo depois de muita pressão da sociedade e do movimento sindical, pela alta.

Um país calejado, que sofreu com hiperinflação até a estabilização trazida pelo plano real, em 1994, merecia uma abordagem mais séria dos seus mandatários. Qual é o verdadeiro motivo de o país enfrentar, em plena pandemia, esse aumento de preços de alimentos tão essenciais?

Há mais de um ano, a grande imprensa fala quase que diariamente sobre os recordes brasileiros na exportação de carne para diferentes países. Como resultado, a oferta do produto para consumo interno foi reduzida e isso elevou o preço a patamares bastante altos e inviáveis para as famílias de baixa renda. Muitos foram obrigados a buscar substitutos proteicos nas carnes de segunda, no frango, porco e principalmente nos ovos.

Com o óleo de soja, a situação é parecida. Recentemente, o Brasil bateu recorde na exportação da soja e derivados. Mais uma vez, a oferta interna ficou menor, principalmente no caso do óleo, que tem parte da produção destinada à elaboração de biocombustíveis. Desde o início do ano, os preços do produto estão mais elevados.

No caso do trigo, o Brasil não consegue produzir o suficiente para atender a demanda interna e a importação do grão já é comum. No entanto, com a pandemia, a oferta internacional diminuiu e as importações ficaram mais onerosas. Com valor em dólar, ao entrar no Brasil, o trigo tem o preço multiplicado por 5,30, valor da taxa de câmbio. Como consequência, farinha de trigo e pão tiveram altas no valor médio.

Já o vilão da vez, o arroz, teve ligeira elevação da demanda em março, quando começaram as primeiras medidas de isolamento social e a população estava temerosa da possibilidade de faltarem alimentos e de sair de casa.

Conforme o isolamento foi se estendendo, ficou claro que não haveria desabastecimento, as pessoas voltaram a sair para comprar e a demanda voltou ao normal. Nos dois últimos meses, no entanto, os preços subiram muito.

Isso porque o volume exportado passou de 65 mil toneladas, em março de 2020, para 99 mil toneladas, em abril e 244 mil em julho deste ano, o que reduziu a oferta. Esse aumento da exportação convergiu com um movimento que ocorre na cultura do arroz nos últimos 10 anos: muitos produtores têm migrado para outras lavouras consideradas mais rentáveis. Ou seja, a área plantada tem diminuído.

Para agravar, desde o final do ano passado, os estoques públicos de arroz na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) estão reduzidos. A soma de todos esses fatores fez o preço deslanchar.

Nem Auxílio Emergencial pode explicar a inflação dos alimentos nem o “patriotismo” dos donos de supermercado pode resolver o problema.

A alta dos preços é causada pelo alto volume de exportação, propiciada pela taxa de câmbio desvalorizada e por uma politica contínua de desmonte dos órgãos e conselhos que cuidam do abastecimento, dos estoques reguladores e das politicas agrícolas, como a Conab e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

O agronegócio tem lucros cada vez maiores, enquanto a população vê os alimentos de melhor qualidade serem enviados para consumo em outros países. Soma-se a esses fatores o abandono das políticas de agricultura familiar que, na década passada, tiraram milhões de famílias do mapa da fome, da pobreza e da situação de insegurança alimentar.

Alimentação é assunto estratégico para qualquer país, relacionado à Segurança Nacional. Nesse momento de pandemia, muitos outros países reduziram as exportações, visando proteger a população diante de um cenário incerto no qual existe uma ameaça concreta e não controlada à vida em todo o mundo.

Infelizmente, o governo brasileiro segue em outra direção, sem entender o papel que lhe cabe, que é proteger a população, garantindo saúde, alimentação de qualidade e auxiliando, por meio monetário, as famílias mais vulneráveis. Em vez disso, repetindo outros tristes momentos da história, culpa os brasileiros por “comerem mais” na pandemia.

Sempre vale repetir que o trabalhador brasileiro paga a conta dos lucros do agronegócio, como pagou a conta do gás, quando da equiparação do preço do petróleo ao mercado internacional, tornando os acionistas da Petrobras mais ricos, como paga toda vez que os serviços públicos básicos são reajustados acima da inflação.

A inflação dos alimentos não é culpa da população, mas da política do governo.