Sobre os setores públicos e privados – Antônio Augusto de Queiroz

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O objetivo desta coluna é desfazer os equívocos, próprios do senso comum e da desinformação, a respeito do funcionamento da Administração Pública, apresentando as principais diferenças e limitações de atuação do setor público e do setor privado.

É comum ouvir comparações entre a suposta eficiência do setor privado frente ao setor público, porém poucos sabem que o gestor público não goza da mesma autonomia decisória do gestor privado ou que ambos têm fins distintos. Assim, conhecer as diferenças e a complexidade dos processos decisórios públicos e privados é fundamental para julgamento mais objetivo.

A primeira diferença é que o setor público, que não tem fins lucrativos, age movido pela necessidade da sociedade, e o setor privado, cuja principal finalidade é o lucro, age por demanda dos indivíduos. A filosofia de atendimento pelo ente estatal deve ser a cada 1 segundo suas necessidades e a do setor privado é a cada 1 segundo sua capacidade, inclusive financeira para adquirir o bem ou serviço.

A segunda diferença é que o setor público, constituído de entes estatais, tem a primazia de administrar o uso de bens públicos para fins públicos e o setor privado, formado por agentes econômicos privados, tem a primazia da competição e de administrar bens privados para fins privados. Mesmo quando, explorando concessão de serviço público, o setor privado atua para garantir o acesso a bens públicos, a busca do lucro e o retorno ao investidor permanece sendo o principal objetivo.

A terceira diferença é que o setor público deve se pautar pelo princípio da equidade, que pressupõe senso de justiça, imparcialidade e respeito à igualdade de direitos, enquanto o setor privado se move, como regra, pelo princípio da eficiência, sem preocupação com aspectos sociais ou de outra natureza que não seja o retorno financeiro ou o lucro.

A quarta é que o setor público age por comando ou determinação do agente político legitimado pela soberania popular, de acordo com o programa de governo aprovado pelas urnas, enquanto o setor privado só age ou investe por expectativa ou interesse financeiro e, para tanto, precisa ter algum incentivo ou certeza de retorno.

A quinta é que todas as decisões do setor público dependem de autorização em lei, enquanto o setor privado não depende de autorização legal para decidir. Além disso, as decisões estatais, como regra, têm caráter normativo/universal e valem obrigatoriamente para todos, enquanto as decisões privadas possuem caráter contratual e valem apenas para as partes envolvidas.

O setor público, portanto, só faz o que é autorizado por lei e o setor privado faz tudo que a lei não proíbe. Ou seja, ao particular, em princípio, tudo está permitido, exceto o que a lei proíbe, enquanto no caso do setor público, em princípio, tudo está proibido, exceto o que a lei permite.

Assim, do ponto de vista da liberdade, a diferença fundamental entre o Estado e os particulares é que a ação do Estado é condicionada pelo princípio da legalidade, ou seja, nada pode, exceto o que a lei autoriza, enquanto no caso do particular tudo pode, menos o que a lei proíbe.

Por fim, o planejamento governamental é mandatório para o poder público, mas indicativo para o setor privado. Dessa forma, o setor privado não pode ser obrigado a aderir às metas e políticas públicas do governo eleito, no que toca a projetos de desenvolvimento.

Registre-se que as ações governamentais ou a produção de políticas públicas — que devem buscar o bem-estar geral da população e que geralmente dependem de recursos orçamentários — por sua natureza, são complexas, apresentam muitos obstáculos políticos e legais, possuem caráter coletivo e exigem mediação prévia, por isso, são distintas das relações entre agentes privados que transacionam no mercado.

As decisões do setor público, portanto, são bem mais complexas. Essas precisam considerar os impactos financeiros e orçamentários, o humor da população, o que pensam a opinião pública e a mídia, o que pensam os governos estrangeiros e organismos internacionais, o que pensam as classes trabalhadora e empresarial, o que pensam a Igreja e as Forças Armadas, enquanto as decisões do setor privado, como regra, precisam considerar apenas a concorrência, os marcos regulatórios e as perspectivas de retorno financeiro.

Além disso, em política não existe solução ideal em nenhuma das arenas sob responsabilidade do Estado: distributiva, redistributiva, regulatória e constitutiva. O que é solução para determinado setor ou segmento pode ser problema para o outro. Por exemplo, o aumento do valor do combustível é solução para a Petrobras, mas é problema para o transportador ou proprietário de veículo. Portanto, a negociação política, as pressões sociais, as mobilizações e as correlações de forças, assim como os esclarecimentos técnicos e especializados, são elementos fundamentais para reduzir o conflito, facilitar acordos e viabilizar o desejo das maiorias ou mesmo o consenso.

A gestão pública moderna já passou por 3 fases, a mais engessada dessas, a burocrática, que vigorou por mais de 1 século, a neoliberal, conhecida como gerencial, que teve curta duração e praticamente terceirizava os serviços públicos, e evoluiu para a chamada nova governança, que é algo intermediário entre a gestão burocrática e gerencial, na qual estão presentes 3 elementos:

1) a entrada de atores privados na prestação de serviços públicos;

2) a natureza participativa e inclusiva da nova governança; e

3) as incorporações de instrumentos e tecnologias do setor privado ao Estado e à burocracia.

Todas as reformas neoliberais, no Brasil e no mundo, que priorizaram a dimensão da eficiência na perspectiva econômica, com valorização da flexibilidade, da produtividade e da redução de gastos, negligenciaram os fins ou o sentido político que deve guiar a Administração Pública: a necessidade da população e o interesse público.

Aliás, todas as reformas administrativas que se basearam nas concepções da Teoria da Escolha Racional, que parte da suposição de superioridade da gestão privada sobre a gestão pública e da busca de vantagens pelo indivíduo, como aquela que o governo Bolsonaro tentou aprovar por meio da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 32/20, fracassaram, porque esses modelos, baseados na lógica de mercado, não se sustentam na Administração Pública e geralmente são questionados pelos usuários de serviços públicos, já que adotam a lógica da relação cliente-consumidor, relação própria para o setor privado, mas inadequada para o setor público.

A lógica do setor público é a do conceito de cidadão, orientada pela necessidade e que, além da eficiência, pressupõe equidade e justiça, enquanto a lógica privada se pauta pela demanda, numa transação de natureza mercantil e comercial de troca.

A gestão ou a governança pública, por tudo isso, deve ter como diretriz central a condução das políticas públicas e da prestação de serviços à sociedade, observando os princípios da capacidade de resposta, da integridade, da confiabilidade, da melhoria regulatória, da prestação de contas e da transparência, mediante conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle para avaliar, direcionar e monitorar os atos governamentais. E nessa perspectiva é descabida a suposição de superioridade do setor privado em relação ao setor público na condução dos negócios públicos.

Compreender o funcionamento, os interesses e fins das atividades públicas e privadas ajuda a sociedade a desfazer equívocos sobre a relação entre Estado e mercado, especialmente porque o primeiro tem a função de prover bens e serviços, sem fins lucrativos, e o segundo tem a função de produzir bens e serviços em troca do lucro e, em razão disso, só atua nas áreas, segmentos ou regiões com garantia de retorno, mesmo quando estabelece “parceiras público-privado” com o Estado.

Como se vê, o processo decisório no âmbito governamental, diferentemente do setor privado, é muito complexo e o desfecho desse, em geral, é muito mais produto da negociação, das disputas internas (ideológica, política ou orçamentária etc.), da pressão externa e da correlação de forças do que da ação puramente racional, como sugere o senso comum.

 Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – Conselhão.