Enfrentar esse tema passa por (re)pensar o modo como habitamos nossos corpos e nosso meio. A relação que temos com os demais seres, nossas próprias escolhas, quanto à família, carreira ou afetos. O mundo que estamos deixando para as gerações futuras. Passa por pensar nas famílias, em como elas sobrevivem, na qualidade de vida que conseguem ter, em um país desigual, patriarcal e racista como o nosso.
Pensar sobre o aborto é pensar sobre a violência masculina, em uma realidade na qual o Ipea estima cerca de 822 mil casos de estupro no Brasil por ano e os dados apontam que mais de 80% das vítimas são mulheres. Pensar nas razões individuais, mas também sociais e coletivas, para uma escolha tão profundamente perturbadora. E pensar nas suas consequências, para quem é direta e indiretamente atingida por essa escolha.
A discussão do PL 1904, entretanto, não é sobre isso. A fúria nele refletida tem menos relação com a interrupção voluntária da gravidez, do que com um processo de violência simbólica e institucional, que acompanha nossa história desde a invasão europeia, e que, depois de um período de certo constrangimento civilizatório, voltou a revelar-se de modo despudorado.
Afinal, o aborto já é (ou melhor seria escrever “ainda é, infelizmente”) crime no Brasil. O que o PL 1904 faz é aprofundar a violência estatal, inclusive através do discurso de quem o defende, sob o pretexto da proteção à dignidade e à vida.
Já há aí uma violência sendo praticada, independentemente de sua aprovação.
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 mostra que 01 em cada 07 mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil. Mais da metade (52%) delas abortou quando tinha 19 anos ou menos; 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos e 6% eram meninas entre 12 e 14 anos. No primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas pelo SUS, em razão de complicações decorrentes de abortos malsucedidos, “foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei”.
Se mulheres pobres morrem, porque fazem abortos clandestinos, em lugares precários, qual é a dignidade ou a vida que se quer proteger?
Antes de 1888, um dos atos mais radicais e dolorosos de resistência contra o horror da escravização era matar o filho, para evitar o destino de escravizado. Há depoimentos de mulheres pobres, que dizem ter realizado aborto por desespero, por saberem que a criança não teria condições de sobreviver com dignidade. É algo terrível. Causa náusea e indignação. A Fundação Abrinq apontou que, em 2023, quase 11 milhões de crianças de 0 a 14 anos, viviam com cerca de 11 reais por dia no Brasil, ou seja, em situação de extrema pobreza. No mesmo ano, houve mais de 20,2 mil mortes infantil e fetal “por causas evitáveis”. Causas evitáveis!
A Resolução 2.294/2021 do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que, em cada procedimento de reprodução assistida – fertilização in vitro, é possível gerar até oito embriões. Antes, sequer havia um número máximo definido. Nesse procedimento, é comum fertilizar um número elevado de óvulos, obter uma quantidade significativa de embriões e, então, selecionar aqueles que terão mais chances de se desenvolver depois de implantados no útero. Os embriões que nunca serão utilizados são descartados.
A que vidas, afinal, esse discurso se refere?
Os três exemplos falam por si. Aborto é o tema agora escolhido para aprofundar ainda mais a política de violência e de morte. Afinal, encarcerar não é resposta eficaz para quem rouba ou mata por dinheiro. Por que seria eficaz, para quem age sem o desejo de ferir, e sim com a vontade de seguir vivendo?
Trata-se do aprofundamento de uma violência direcionada, que não ocorre apenas através da ação concreta, que a aprovação desse projeto potencializará, de impedir meninas e mulheres pobres de acessar serviços seguros de saúde. Também ocorre através do ato simbólico de colocar em discussão a possibilidade de punir de modo ainda mais grave a mulher violentada. O que ele estabelece, concretamente, é a possibilidade de que uma mulher estuprada seja condenada a cumprir pena mais alta, em razão do aborto, do que aquela que poderá ser aplicada ao estuprador. A mensagem é nítida: o reforço de uma hierarquia entre os corpos e entre o que se reconhece ou não como violência, dentro da nossa estrutura social. Ao propor aprofundar a criminalização da escolha, sublinha-se a naturalização das tantas outras violências, de que as meninas e mulheres são alvo.
Mas também não se trata apenas de um discurso misógino.
A suposta cruzada moral dos homens de bem do nosso Congresso tem alvo certo: são os corpos das meninas e das mulheres pobres, negras, periféricas. Algo similar à política de combate às drogas: uma técnica de controle social direcionada. Uma política de dominação de classe, cujo recorte de raça e de gênero é tão óbvio, que cansa um pouco ter de referi-lo.
Combater essa situação é, isso sim, defender a dignidade e a vida.
A mesma Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), de 2021, refere que 81% das mulheres que já fizeram aborto professam alguma religião, sendo que mais de 70% delas são cristãs. Não são hereges negando o direito à vida. São mulheres que vivem em ambientes machistas, miseráveis ou apenas inadequados para a gestação de um novo ser. Aborto é um trauma que certamente elas teriam preferido evitar, mas evitar implica realizar políticas públicas de prevenção; depende de acesso à informação e à educação sexual; depende de possibilidades outras de viver em comunidade.
Aborto é uma questão social; não um crime.
Insisto, porém: o PL 1904 não é sobre isso. É mais uma demonstração de força; a prova concreta de que o decurso de tempo não garante avanço e de que somos uma sociedade cada vez mais adoecida e perversa.
O controle e a eliminação dos corpos pobres e negros é política pública no Brasil desde a invasão portuguesa. Aboliu-se a escravidão formal, os direitos sociais foram disciplinados, a ditadura cedeu espaço à democracia, mas nada disso impediu que essa política de dominação violenta seguisse, através das chacinas, do sucateamento dos serviços de saúde e educação, do desemprego estrutural, do desrespeito aos direitos trabalhistas, da gentrificação das cidades e de tantos outros tristes exemplos.
As mulheres sempre foram alvo preferencial deste Estado que decide quem pode viver e quem deve morrer. Se é de vida e de dignidade que querem falar, que seja da vida das pessoas que têm sido tratadas historicamente como corpos matáveis. Do contrário, tenham a coragem de assumir seu objetivo, assim como temos a coragem de dizer que não aceitaremos mais essa violência.
Valdete Souto Severo, Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região e professora de Direito e Processo do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).