Juliano Spyer diz que elite brasileira tem visão estereotipada e arrogante sobre evangélicos
O Brasil vive o maior processo de transição religiosa do mundo, com sua população migrando de forma acelerada do catolicismo para o cristianismo evangélico. Se em 1970 os evangélicos representavam 5% dos brasileiros, hoje são cerca de um terço e, nesse ritmo, em 2032 serão a maioria.
Essa transformação tem impacto nas instituições e na vida das pessoas, especialmente dos mais pobres, mas é ainda pouco compreendida pela elite do país, afirma o antropólogo Juliano Spyer, autor do livro “Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam”, que chega às livrarias nesta semana pela Geração Editorial, com apresentação de Caetano Veloso.
A ideia da obra surgiu quando Spyer morava numa vila de trabalhadores na periferia de Salvador para a pesquisa de campo de seu doutorado, sobre uso das mídias sociais pelas classes baixas. Lá, fez amizade com famílias evangélicas, passou a frequentar cultos e percebeu o impacto prático que as relações construídas na igreja tinham na vida de pessoas vulneráveis e sem acesso a direitos e serviços públicos.
“Essas igrejas produzem um serviço que o Estado não dá conta ou para os quais a sociedade brasileira não se mobiliza. Há uma rede de ajuda mútua: quando o marido fica desempregado e se arruma emprego, o filho se envolve com drogas e encontra um lugar para ser tratado, o marido que batia na mulher encontra caminhos para negociar uma harmonia em casa. É um estado de bem-estar social informal”, diz.
Spyer afirma que a elite brasileira tem uma visão “estereotipada, pouco esclarecida e muito arrogante” sobre os evangélicos, que se reflete também em parte da classe política, inclusive na centro-esquerda. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro, que teve entre os evangélicos sua maior vantagem eleitoral em 2018, adota uma estratégia “oportunista” de aproximação desse grupo, sinalizando que “se as outras pessoas não se interessam por eles, ele se interessa”, diz o antropólogo.
DW Brasil: Como foi morar numa vila na periferia de Salvador de abril de 2013 a agosto de 2014 durante o doutorado?
Juliano Spyer: Sou um brasileiro branco, de classe média, ex-estudante da USP, a quem foi dada a oportunidade de fazer um programa de doutorado [no Reino Unido]. Precisava escolher um lugar [para a pesquisa de campo] e fui para um povoado no limite da área metropolitana de Salvador, numa vila de trabalhadores na Costa dos Coqueiros. Tive a oportunidade de encontrar um país que, nos documentos, é o meu, mas no qual eu nunca tinha vivido. A antropóloga americana Cláudia Fonseca, que vive no Brasil, disse que a divisão racial e por classe no Brasil é semelhante à da África do Sul no apartheid, mas se mantém e é silenciosa.
E por que decidiu pesquisar os evangélicos?
A antropologia do cristianismo é um dos principais temas da antropologia contemporânea. O Brasil pobre, principalmente na área urbana, é predominantemente evangélico. Não existe no mundo uma transição religiosa acontecendo como a do nosso país, que é o maior país católico do mundo e está se tornando um dos maiores países protestantes do mundo.
Em 1970 havia 5% de evangélicos, incluindo protestantes. Em 2000 eram 22%, e no ano passado era um terço da população acima de 16 anos. Os estatísticos preveem que em 2032 o cristianismo evangélico se tornará a religião predominante no país.
Isso afeta todo mundo. Por um lado, muitas igrejas evangélicas se deram conta de que, para influenciar nas pautas de comportamento, elas precisam se envolver com o governo. Mas existe um lado B, que é o efeito da igreja na vida das pessoas. [Na vila em Salvador] a gente convivia com a violência doméstica, ouvia gritos, e não adiantava chamar a polícia. Uma das primeiras consequências da conversão [ao cristianismo evangélico] era acabar com isso. A conversão também é um ato inteligente, e não apenas de fé, que traz benefícios à vida do brasileiro mais pobre.
No final dos 18 meses, descobri que várias das pessoas da igreja evangélica com quem me relacionava haviam participado de organizações criminosas e sido presas. E eram ótimos pais, esforçados, generosos. É a principal maneira para reinserir na sociedade pessoas que estiveram envolvidas com violência.
Sem desprezar os muitos problemas de ordem moral, temos que considerar o quanto essas igrejas produzem um serviço que o Estado não dá conta ou para os quais a sociedade brasileira não se mobiliza. A motivação desse livro é falar, para as pessoas do meu círculo, que existe muito mais complexidade e valores a serem levados em conta em relação a esse fenômeno.
No mapa das religiões, o que é o cristianismo evangélico?
Evangélico é um termo disputado. Precisamos usá-lo porque eles se reconhecem dessa forma entre si e em relação aos outros. Agora, se você vai ao Nordeste, evangélico é todo mundo que é protestante, inclusive do protestantismo histórico, como os luteranos e os calvinistas. No Sul, esses grupos se diferenciam. Mas há um grau de convergência, são todos protestantes e vieram do mesmo movimento contestador do Lutero.
São predominantemente conservadores no âmbito moral, mas há igrejas que relativizam isso, como a Bola de Neve. O [ginasta] Diego Hypólito, por exemplo, atleta brasileiro nas Olimpíadas, se assumiu homossexual e é dessa igreja. O que diferencia o pentecostalismo é ser uma religiosidade feita pelo povo, comunicada de uma maneira simples e que trata das questões deles do dia a dia. Isso se espalhou como fogo dentro do Brasil popular.
Por que o cristianismo evangélico teve tanta aderência nas camadas populares?
Segundo o antropólogo Gilberto Velho, o principal fenômeno social brasileiro do século 20 é a migração de nordestinos em massa para as capitais ao sul. Ao chegar nessas cidades do sul, eles ocuparam regiões periféricas, desprovidas de tudo, inclusive de Igreja Católica. São originalmente católicos, mas não têm garantias de trabalho, transporte, vivem em condições ruins de moradia, se desprendem das raízes familiares.
E nessa igreja você dá voz à sua religiosidade profunda, é ouvido como pessoa, não como número ou funcionário, põe para fora suas inquietações, frustrações e dores. Além disso, há uma rede de ajuda mútua: quando o marido fica desempregado e se arruma emprego, o filho se envolve com drogas e encontra um lugar para ser tratado, o marido que batia na mulher encontra caminhos para negociar uma harmonia em casa. É um estado de bem-estar social informal.
Esse cristianismo tem consequência direta na estabilização da vida de pessoas em situação de vulnerabilidade. Mas hoje você encontra também igrejas evangélicas em bairros mais luxuosos das capitais.
Como as classes média-alta e alta em geral veem os evangélicos?
Têm uma visão estereotipada, pouco esclarecida e muito arrogante. Veem ou como o evangélico do mal, o sujeito manipulador da fé que ganha dinheiro e se usa da ingenuidade popular, ou como o evangélico do bem, o coitadinho que precisou se apegar a isso. Mesmo quando se tem uma visão benigna, é prepotente.
Isso se reflete na cobertura da imprensa sobre os evangélicos?
Há uma disputa pelo acesso a camadas populares entre os grupos que controlam a comunicação no Brasil, de grupos de um mundo mais aristocrático, católico, em relação a grupos pentecostais, sendo a TV Record o principal deles. Parte do desinteresse ou falta de generosidade para tratar desse assunto se dá por uma disputa no âmbito da indústria da comunicação.
No livro, cito como a data dos 500 anos da Reforma Protestante foi anunciada no Jornal Nacional [em 2017]. Ele falam de Lutero, do Calvino, da fundação da primeira igreja protestante no Brasil, mostram uma celebração numa igreja protestante histórica, predominantemente branca no Rio de Janeiro, e os luteranos no Sul do país. Não entra um evangélico, como se o assunto não existisse. Sendo que a Assembleia de Deus, maior igreja evangélica do Brasil, foi fundada por missionários suecos batistas e eles se consideram protestantes.
Os evangélicos são mais conservadores do que o resto da população?
Sim e não. Se você pensar nos bolsões de prosperidade de pessoas que têm estudo superior, os evangélicos são realmente mais conservadores. Mas se você considerar o Brasil popular, há um senso de conservadorismo em relação a valores. Nos primeiros 400 anos do Brasil não dá para separá-lo do catolicismo, e de um catolicismo conservador. Esse conjunto de valores em relação às pautas de gênero, sexual, LGBT não é estritamente pentecostal, mas se desdobra no catolicismo e no espiritismo.
O grupo religioso que mais deu vantagem de votos a Bolsonaro na eleição de 2018 foi os evangélicos. Por que isso ocorreu?
Concordo com um argumento levantado pelo cientista político Mark Lilla, de Columbia, em que ele fala que o sucesso da eleição do [Donald] Trump se deu pela incapacidade da adversária naquele momento, a senadora Hillary Clinton, de conversar com diferentes.
No Brasil, de um lado você tem um governo que demonstra respeito pelos valores dessa população [evangélica]. E do outro lado tinha o outro candidato, Fernando Haddad. Não sou antipetista e não falo isso como crítica pessoal, mas ele cometeu um erro ao chamar o bispo Edir Macedo de charlatão. Havia mulheres da Igreja Universal batalhando dentro dos seus espaços de culto para defender um candidato que era alternativa ao Bolsonaro que, com essa declaração, perderam essa possibilidade, pelo argumento de “como votar em alguém que nos desrespeita”.
A alternativa é entender mais sobre o assunto e fazer uma negociação na qual não vai se concordar em todos os pontos, mas não irá demonizar a pessoa. O fato de eu escrever um livro que é empático [aos evangélicos] não significa que eu concordo com a maior parte das questões que eles defendem em relação a questões morais, mas quero dizer que não é só isso que deve ser considerado.
Bolsonaro afirma que até o final de seu mandato nomeará um ministro ao Supremo que seja “terrivelmente evangélico”. Como o senhor interpreta essa fala?
Há uma ação oportunista do Bolsonaro para se aproximar de um grupo que é largamente desconhecido e rejeitado automaticamente pelo outro campo. O presidente sinaliza para esse grupo que, se as outras pessoas não se interessam por eles, ele, sim, se interessa.
A ministra da Mulher, Família, Direitos Humanos, Damares Alves, é uma das vozes radicais no governo na pauta moral. O quanto ela representa os evangélicos?
Há pessoas no meio evangélico simpáticas à ministra Damares, mas também há pessoas no meio evangélico simpáticas a pessoas como a [deputada federal pelo PT-RJ] Benedita da Silva e a Marina Silva, que são da Assembleia de Deus. Assim como a Damares, há outros evangélicos no governo que são repudiados ou motivo de vergonha para alguns grupos evangélicos.
Além disso, o ambiente na igreja evangélica é politizado, no sentido de questionar qual é o interesse do pastor quando ele traz tal pessoa, ou por que o pastor propõe algo ou está conversando com tal político. Foi aplicado um questionário em 2018 durante a Marcha para Jesus e um dos achados foi que a maior parte dos evangélicos ali não votava no candidato indicado pelos líderes da igreja.
E a bancada evangélica, representa a diversidade do cristianismo evangélico? Há instrumentalização da religião para ampliar o poder político?
Ela é representativa de muitos evangélicos, conta com representantes de muitas outras igrejas. Mas a Marina Silva não fazia parte dessa bancada e é evangélica.
Isso não impede que se faça uma crítica justa à utilização de estruturas da igreja para ter uma presença cada vez maior dentro do Estado e, a partir dessa presença, impor visões que são diferentes das visões dos evangélicos. Até pouco tempo, o cristianismo evangélico, como herdeiro da tradição protestante, sempre foi defensor da liberdade de culto.
Neste momento há uma sobreposição de canais, em que as igrejas são instrumentalizadas para eleger pessoas que depois deixam de ter responsabilidade com seus eleitores, mas somente com os donos dessas igrejas. É uma questão séria, que precisa ser considerada enquanto se estabelece diálogo com os evangélicos comuns, e não esperar até a eleição para então fazer um acordo de conveniência com o dono de uma igreja.
Fonte: Folha SP
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